Cônsules honorários

Trabalham de graça - por generosidade, por hábito, alguns por engano. Alguns por interesse. Por honra, diz o nome. Carimbam, recebem, assinam, assistem, trasladam... Vão aos barcos, às obras, também aos jantares. Retratos do poder honorário.

Não se embaraçou. Quando chegou ao Palácio da Ajuda conduzindo no seu carro o diplomata da Serra Leoa para uma festa oficial não teve tempo para abrir a boca: "É o motorista do senhor embaixador, tem o número 31, esteja cá à hora combinada". No prazo certo estacionou onde ordenaram, junto aos outros motoristas prolixos em comentários: "Com que então Serra Leoa, hã? É só diamantes, hã?". Ao altifalante chamam-no: "Motorista número trinta e um". O currículo enriquecera-se.O homem chegara de Espanha num carro em 55ª mão. Aparcou-o à saída de Lisboa. Ali comia graças à bondade de alguns vizinhos, ali dormia. Ali viveu durante três meses. Num estado total de pobreza. Até que a polícia lhe levou o carro e começou a cobrar à hora o estacionamento no parque da PSP. A factura somou 60 contos. Durante oito dias ele conseguiu que o serra-leonês dormisse na Misericórdia. Conseguiu que a PSP desistisse da conta. Depois levou-o para casa, para espanto da mulher, com o argumento de que poderia ajudar na cozinha contra algum "pocket money". Durou três meses. Depois desapareceu.Desistiu de ir almoçar com os amigos, diplomatas de carreira, políticos, empresários, membros do governo. Chamavam-no de um barco. Havia um homem encafuado num camarote há três meses. Passara em seis portos antes de Lisboa. Lançou-se-lhes nos braços. Em pranto. Queria sair. Não para ficar em Portugal, mas para não estar fechado. Não pôde fazer nada. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras repatriou-o."Imagina a frustração? É voltar a menos do que zero".Estas acções fazem parte do trabalho dele quando é cônsul honorário. Sim, porque na maior parte do tempo ele é outras coisas. Manuel de Noronha de Andrade é advogado com formação financeira. "Sou uma pessoa super-competente e profissional, sou um business man" um intermediário. Já apareceu nos jornais. Não como membro da comissão política do PP, não como fiel da Ordem de Malta ou do Santo Sepulcro. Surgiu nas notícias como último presidente da Torralta antes do negócio com a Sonae, como "cangalheiro", quando comprou as 14 maiores empresas funerárias portuguesas para a líder mundial do ramo, ou quando concorreu contra Edite Estrela para a câmara de Sintra. Nunca como representante da Serra Leoa há mais de 16 anos. É um dos 130 cônsules honorários em Portugal. Daqueles que trabalham e não recebem nada em troca. Nada? O seu papel é meramente "honorífico?", sem qualquer utilidade palpável que não seja a de encaminhar processos para as respectivas embaixadas e representar o país em cerimónias oficiais? Dos que só sabemos o nome quando queremos um visto para um país menos conhecido? Mas o que dizer de cônsules como o da Moldávia, por exemplo, que de repente se tornou fundamental no caso dos imigrantes do "seu país", ou o do Congo (Brazzaville) que interveio na libertação dos reféns de Cabinda? Quem são estes homens e mulheres, que sendo portugueses, defendem em Portugal um outro país? E porque querem eles este título, a ponto de haver quem concorra e quem tente mesmo "comprar" o lugar?"São pessoas qualificadas do ponto de vista social e de negócios. Com reconhecimento local são muito úteis para resolver questões variadíssimas, desde os passaportes perdidos por turistas no Algarve, à resolução de incidentes provocados por marinheiros na Madeira ou nos Açores", arrisca Fernando Lima, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). O governo português em situações delicadas aproveita esses canais, "são intermediários seguros"."Eu não seria nunca um embaixador do croquete. Somos free lancers da diplomacia. Não estamos presos pela parte social e burocrática, espartilhados dentro da carreira, onde estão os lobbies do MNE, onde não é premiada a competência. Se desempenha bem o seu papel com honestidade e proficiência, o honorário pode ser mais útil e eficaz dos que vão a cocktails e se entretêm a trocar opiniões frias sobre o médio oriente", diz Noronha de Andrade. São empresários como Salvador Caetano, Américo Amorim, Horácio Roque, Correia da Costa (da Soares da Costa), advogados como Henrique de Polignac ou João Maria Bravo, políticos como Ângelo Correia. Mas também há professores como Sousa Lara ou Jorge Veiga ou antropólogos como José Capristano. Ou outros ilustres desconhecidos.Para países com poucos recursos é uma maneira barata de ter quem olhe pelos seus assuntos no estrangeiro. Assim é, por exemplo, com Vasco de Sousa Gama, cônsul desde 1998 da Etiópia, presidente da Confederação do Comércio Português. Engenheiro electrónico tencionava fomentar as relações económicas entre os dois países, o que ainda não alcançou. Contrariamente aos seus colegas diz que "não rouba muito tempo nem dinheiro". Em Portugal haverá um ou dois etíopes que não se lhe apresentaram e não é preciso visto para ir à Etiópia. "O consulado sou eu, isto é mais uma responsabilidade, o país (só lá fui uma vez) é muito interessante, não é por acaso que é a sede da OUA (Organização de Unidade Africana). Agora vai para lá um embaixador português, pode ser que tudo fique mais fácil".O número de honorários está a crescer. Em média há três novos por ano, revela Fernando Lima. "Os países têm menos dinheiro, uma embaixada é muito cara. Por outro lado o mundo abriu-se muito, promovem-se mais as relações exteriores. E Portugal é um país da União Europeia, por isso ganhou outra relevância".Quando o convidaram para cônsul da Serra Leoa, Noronha de Andrade foi ao mapa ver exactamente onde ficava o país. Aceitou, pensando que teria pouco trabalho, tal como sucedeu com José Capristano do Mali, Jorge Amado da Moldávia ou Sebastião Lancastre, da Nova Zelândia. "Agora há imensos refugiados. São mais de trezentos. Há uma associação de que sou presidente e a comunidade está organizada, auto-ajudam-se. Sou amigo deles e reconhecem que sou um cônsul activo: vêm-se queixar dos patrões portugueses e eu ligo-lhes: 'ouça, sou cônsul, sou português, sou advogado e ou paga ou está feito ao bife comigo'". E assim vai resolvendo os problemas. "Isto é mais do que uma magistratura de influências. Há casos em que sou incisivo, bruto mesmo. Como, por exemplo, quando um dos presos não se podia virar para Meca, na cela da prisão. Joguei todos os argumentos".O apoio a cidadãos presos é uma das tarefas dos cônsules. Noronha de Andrade visita regularmente um deles, apanhado em trânsito com droga, levando-lhe livros em inglês, escrevendo cartas à mulher ("isto é mais como obra de misericórdia"). O colega de Marrocos no Porto, Amador e Pinho, visita-os em Custóias para ver da sua saúde, arranjar-lhes roupas, comprar-lhes tabaco. Sempre indignado: "São marroquinos sem papéis, não são criminosos como os outros, não deviam estar na mesma cela". Noronha de Andrade perde tempo (para lá dos vistos e de preparar alguns documentos, quase tudo "chapa três") cuida das coisas dos serra-leoneses, mas avisa logo: "'Sou vosso cônsul mas sou português. Não têm a minha protecção se se metem em porcarias como o tráfico da droga ou diamantes.'". Ela está longe de tudo isso. Maria Manuela Martins, cônsul honorário de França em Leiria, tem embaixador residente em Portugal. O consulado funciona como uma espécie de filial da embaixada em Lisboa. Advogada, exerce este lugar há quatro anos, tempo para duplicarem os inscritos: tem 800. A maioria são luso-descendentes, a segunda geração de emigrantes, com nacionalidade francesa ou dupla-nacionalidade: "Estão a voltar cada vez mais. Regressam por questões de segurança e dificuldades económicas; dizem que a França já deu o que tinha a dar, já não é fácil amealhar". Neste simples escritório com placa de consulado francês, eles buscam a renovação do passaporte, do bilhete de identidade, traduções de documentos, etc. Maria Manuela, sorriso largo, 45 anos, é distingue-se dos outros nove cônsules com quem a PÚBLICA falou. De negócios sabe zero, o seu assunto é mais cultural e de apoio aos ex-emigrantes. Vereadora independente pelo PS na oposição da Câmara de Leiria, presidente da Alliance Française, primeiro recusou o consulado. Foi o marido quem a convenceu. "Percebi mais tarde porquê. Morreu pouco depois com leucemia". É cônsul por gosto, pelo prazer que lhe dá conviver com as pessoas. "Tenho um certo espírito de missão" reconhece. Gasta tempo no consulado mas não perde dinheiro: "Temos uma comparticipação anual que nos é atribuída de acordo com um relatório e que cobre a maior parte das despesas". Como ela, também o cônsul da Nova Zelândia recebe algum dinheiro: "Eu não sei em que mundo é que estes senhores vivem porque apenas comparticipam com uma verba anual, perfeitamente insignificante, que nem sequer uma secretária paga".Sebastião de Lancastre, conde da Guarda, presidente da Associação Nacional dos Operadores de Cartões Visa e durante trinta anos presidente da Unicre, é o único representante da Nova Zelândia em Portugal há dez anos. Nunca percebeu no que se metia: "Começou por não dar trabalho nenhum e agora dá muito". Não só o país desatou a pedir mais dados sobre Portugal como há muitos pedidos de informação (dois ou três por mês) de gente que quer emigrar para os antípodas.Aos 68 anos, nunca visitou o país. Nunca teve tempo. Talvez lá vá este ano assistir à Taça da América. O conde aborrece-se com os cocktails - "é uma maçada, é sempre de pé e muita gente, a mesma gente; se for jantar ainda vou, porque por mais gente que haja ao menos estou sentado" - com as recepções -"é uma engrenagem infernal, parece a primeira quinzena do jet set na Quinta do Lago, quem vai a uma festa tem que convidar depois, é imparável e terrível".Só visitou o país duas vezes. Na primeira o convite tinha uma nota de rodapé: "Tudo será por sua conta". Às cinco da manhã, a caminho de Freetown, depois de ter persuadido os oficiais de alfândega a não mexerem nos presentes de ouro ("a fingir, claro está") que levava para o presidente, juntamente com uma carta de Mário Soares e outras missivas oficiais, o enviado do ministro dos Negócios Estrangeiros perguntou-lhe se ele não tinha umas libras. Deu-lhe trinta. Dessa viagem guarda muitos sinais de pobreza e de corrupção, um "povo muito 'sweet'" e lembra como nos cofres dos bancos não havia diamantes ou ouro mas...arroz. Era essa a moeda forte. Não ficou com muita vontade de lá voltar. Sorriu quando leu a notinha do convite. Os cônsules trabalham "de borla". "Não compensa ser cônsul", frisa. Não é bem assim. Há um acordo mais ou menos explícito de que os cônsules pagam o telefone, a renda do consulado e, como contrapartida, o país paga-lhes em relações: abre-lhes as portas para negócios. Isto é genericamente aceite como legítimo. "Não nego que haja o interesse económico", analisa Fernando Lima, "o mundo é feito de negócios, o mundo é muito concreto".Leote Pires, um dos cônsules mais antigos, nega aproveitar essa franquia: "As possibilidades de negócios que passam por um consulado são imensas... uns, a maioria, agarram-nos, poucos, como eu, passam-nas a outros. Com o Congo (Brazzaville) não faço negócios. Se quiser não sei quantos mil hectares de terreno lá, tenho, se quiser exportar e importar também posso, mas não quero. São as normas da carreira. E eu tenho que ser credível. Como é que o empresário que quer um visto me diz a verdade se pensa que está a falar com um concorrente?"Noronha de Andrade e Vasco Gama afirmam que fazer negócios é contra o estatuto diplomático firmado pela ONU. Embora todos saibam que há mil e uma formas de tornear a questão, intermediando, criando uma empresa comercial anónima... E, na verdade, a Convenção de Viena que regula as relações consulares não proíbe esta prática muito antiga.O consulado da Islândia começou, em 1944, por ser um consulado de negócios, com o avô de Helena Guerra Dundas, 32 anos, economista e actual cônsul. Hoje, a funcionar em Paço de Arcos, é mais "de conexão, de base de apoio e comunicação a islandeses, sobretudo turistas."O que faço é com gosto, não tenho qualquer intenção de retorno", insiste Noronha de Andrade. O futuro pode ser outro. Está a mediar conversações sobre pescas entre os dois países, o que lhe pode interessar como consultor que é; há firmas estrangeiras a querer montar casas, escolas, tudo em pré-fabricado e ele não se põe de fora. E os diamantes? "Ainda não está nos circuitos sérios, não me importaria de olhar para o negócio se o percurso fosse legal. Ganho a minha vida honradamente"."Os mais espertos", estão interessados nos consulados por causa dos negócios, mas há outra coisa que pode ser aliciante: o prestígio do título. "Existe um 'coté' de vaidade para os que precisam; a mim não me interessa", sublinha Noronha de Andrade. O que o move então? "Preciso de me esquecer de mim próprio e ajudar os outros, é um motivo de satisfação e preenchimento pessoal, mergulhar nos problemas dos outros em vez de ser narcisista. É um quixotismo meu". A maioria destas pessoas "já tem a fotografia no jornal", já tem "estatuto social" mas o nome de cônsul reforça-o, o "acesso ao poder é sempre muito impulsivo", sorri Fernando Lima. Vasco Gama não entende. "Estatuto? Não dei por nada. Vida social? Já tenho que chegue e nem sou muito convidado. Negócios? Não me traz qualquer vantagem. Sempre fui dado a missões de apoio". Amador e Pinho, de uma grande empresa de trânsitos e agenciamento de navios no Norte: "Eu gostava muito de saber fazer negócios com isto. Eu estou numa de Madre Teresa de Calcutá". Aliás, contesta que a associação consular de que é tesoureiro - agrega mais de 60 cônsules do Porto e organiza um almoço mensal - sirva para intercâmbio de negócios como alguns dizem: "É apenas para convívio". E também não serve para lutar por benesses. Não se pense que os cônsules têm muitos privilégios, apesar de a lei os equiparar em algumas regalias aos cônsules de carreira. Há os que usam o CC (corpo consular) nos carros, mas isso não é um direito, avisa Fernando Lima, "fecha-se os olhos...". Há uns (raros como Leote Pires) que têm passaporte diplomático mas isso depende do país que os escolheu. Todos têm um cartão azul "que lhes dá alguma posição, mas sem qualquer relevância" continua o funcionário do MNE. Então, o que lhes resta? A palavra "honorário", "não têm mais nada, é uma palavra que tenta ser positiva, de reconhecimento social".Reconhecendo que "alguns são cargos só honoríficos", Leote Pires adianta há quem não goste destes diplomatas "sui generis". "Um cônsul pode ter um 'poder poderoso': é um cidadão português que paga os seus impostos e por isso tem o direito a ser bem tratado, é um diplomata de um país estrangeiro e é um empresário. Imagine o Américo Amorim, é importantíssimo!". Amador Pinho considera que os cônsules não são bem queridos pelo MNE: "Pensam que nós temos muito dinheiro, somos muito ricos e não fazemos nada! Não é verdade. Eu não ando em recepções e comezainas, trabalho valentemente por Marrocos!".Fotografias: Daniel Rocha

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