Entre o Sonho e o Pesadelo

Este vigoroso e belo romance de Alejandro Jodorowsky é e não é autobiográfico. No fundo, também não é apenas um romance: a simbologia inclusa permite lê-lo como um percurso iniciático.

Circulavam energias estranhas no Chile dos anos 30. Era uma terra de pobres e de mineiros, onde os cobres e os nitratos que se exportavam para os Estados Unidos determinavam a influência externa na política nacional - aliás, já bastante atormentada por conflitos entre comunistas, trotskistas e anarquistas, pela presença ostensiva de um partido nazi, pela polícia política e os seus torcionários e por um exército que reprimia as reivindicações laborais e eliminava contestatários e degenerados. Mas era também uma terra mágica, com personagens meio reais e meio imaginários e pessoas comuns dotadas de poderes incomuns, que conseguiam sair do corpo (tornando-se assim imunes à tortura), sair do tempo (tornando impossível o que antes parecia inevitável) ou perscrutarem o passado e o futuro. Uma terra de sonho, apesar de tudo, onde personagens como Sara, a mãe do narrador, sentindo-se "repudiada por Marx e Trotsky andava a agora a ler sobre ioga tibetano" e, para mudar de vida, decide abrir uma "boutique" chamada "O Oitavo Chakra".O narrador é e não é Alejandro Jodorowsky, o que simultaneamente faz com que este vigoroso e belo romance - que conserva em português todo o seu viço graças à tradução de José Vaz Pereira - seja e não seja autobiográfico. No fundo, também é e não é apenas um romance: a simbologia inclusa permite lê-lo como um percurso iniciático e o autor - que defende a tese de que "A arte deve servir para curar", como explicava no ano passado ao "El País" - avança ainda ser a obra um exemplo prático de uma das duas técnicas terapêuticas por si inventadas. Com a primeira, a psicogenealogia, elaborou o anterior "Donde mejor canta un pájaro" (1994), com o qual iniciou a "viragem autobiográfica" (o tema é o percurso dos avós desde a Rússia até Valparaiso, o título é uma homenagem a Cocteau); com a segunda, a psicomagia, criou este livro, publicado originalmente em 1999, sobre os seus pais: ele minúsculo, comunista e ateu, ela gigantesca e miraculosa.Descendente de uma família de judeus russos que emigrara para o Chile, Alejandro Jodorowsky nasceu em 1930, em Iquique. Pouco se conhece da sua vida até se fixar em Paris, em 1953, para estudar mímica com Marcel Marceau. Em 1962, com Fernando Arrabal e Roland Topor, fundou na capital francesa o colectivo experimental "Théâtre du Panique". Viajou até ao México, onde vivia já um dos seus grandes ídolos - Luís Buñuel -, manteve durante algum tempo uma banda desenhada semanal intitulada "Fabulas Panicas", e acabou por se instalar neste país. Aí iniciou carreira como realizador de cinema, estreando-se em 1968 com "Fando y Lis". Contudo, o filme que o viria a celebrizar foi "El Topo" (1971), saudado por John Lennon como uma obra-prima e onde Jodorowsky assinava o argumento, a banda sonora e o papel do protagonista - é ainda hoje considerado o seu "ex-libris" cinematográfico, e um dos melhores exemplos de osmose entre o cinema independente norte-americano dos anos 60 (sobretudo de Kenneth Anger e Maya Deren) e a tradição surrealista europeia de Buñuel e Dali.A história profundamente mitológica de "El Topo" teve uma continuação em 1974 com "The Holy Mountain", que, contrariamente às expectativas, foi um fracasso comercial. Jodorowsky envolveu-se entretanto numa primeira tentativa de adaptação ao cinema da obra de Frank Herbert, "Dune", para a qual haviam sido asseguradas a colaboração musical dos Pink Floyd e as interpretações de Gloria Swanson, de Orson Welles e de Salvador Dali. A concepção visual do projecto estava a cargo de H. R. Giger e de Jean Giraud (Moebius), mas os dois milhões de dólares gastos na pré-produção e o avolumar das tensões entre Jodorowsky e Herbert fizeram abortar o filme, que mais tarde transitou para as mãos de Ridley Scott e, finalmente, de David Lynch. O terceiro filme de Jodorowsky, "Tusk" (1978), passou relativamente despercebido e só onze anos mais tarde reatou a carreira de realizador com "Santa Sangre" (1989), a que se seguiram "The Rainbow Thief" (1990), "Viaje a Tulún" (1994) e "Abelcaim"(1999).Foi, no entanto, durante os anos 80 que Jodorowsky se tornou imensamente popular, mas graças à banda desenhada e à colaboração com Moebius, com o qual, em 1978, publicara o álbum "Les Yeux du Chat". O fascínio de Moebius pelos ambientes visuais da ficção científica e do futurismo e os pontos de vista alquímicos e xamânicos de Jodorowsky vieram a culminar na saga "O Incal", que começou a ser publicada em fascículos na revista "Metal Hurlant" (então dirigida por Moebius) e se transformou numa obra de culto, hoje em dia com seis volumes e duas sequências: "A Casta dos Metabarões", feita em parceria com o desenhador argentino Juan Gimenez; e "Avant L'Incal", com desenhos de Zoran Janjetov, que em Agosto próximo verá publicado o seu quarto volume.Admirador confesso de Carlos Castañeda (que, no entanto, acha excessivo em diversos aspectos), Jodorowsky fez psicanálise com Erich Fromm e defende não existir diferença entre o sonho e a realidade: a vida é de qualquer forma um sonho, podendo nós transformá-la num sonho agradável ou num pesadelo. Por isso a psicanálise falha ao pretender racionalizar o inconsciente, que é por natureza irracional.Só voltou a visitar o Chile em 1991. Entretanto, abriu em Paris uma loja dedicada ao oculto e ao Tarot de Marselha (o "Cabaret Mystique") e publicou vários outros livros. Entre a sua ficção destaca-se "Le Doigt et la Lune - histoires zen" (Albin Michel, 1997). As teorias terapêuticas foram desenvolvidas no livro que publicou com Gilles Farcet, "Le Théâtre de la Guérison" (Albin Michel, 2001), e no recente "La Danse de la Realité" (Albin Michel, 2002), em que discorre detalhadamente sobre a psicogenealogia, a psicomagia e o sentido da vida.

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