Há 20 anos que a noite é Frágil

Verão de 1982. Em Espanha, era a 'movida madrileña'. Em Londres começava o período 'acid'. Em Nova Iorque, depois do disco, era a 'house'. Em Portugal a noite ainda não era uma continuação da tarde, era uma excrescência desta, estética e eticamente duvidosa. 15 de Junho. No Bairro Alto, quase em frente à tasca de vinho tinto e ginjinhas de dois irmãos galegos, de boina, colete e camisa branca, a pesada porta de ferro de uma antiga padaria forrada a azulejos brancos abriu-se pela primeira vez para um bar - o Frágil. Foi a noite que mudou Lisboa. Fundou-se um mito. Para lá da porta negra e muda do 116 da Rua da Atalaia, no enebriamento da novidade, os corpos e as ideias deixavam-se arrastar pelas paisagens sonoras dos Cramps, dos Gun Club, dos Depeche Mode, dos The The. A primeira decoração, em 85, foi de Pedro Cabrita Reis, hoje um nome maior da cena artística nacional.Entre euforias, preparavam-se aulas, esqueciam-se encontros, perdiam-se aviões, projectavam-se espectáculos, maquinavam-se esboços de argumentos - mais do que ir ao Frágil vivia-se o (e no) Frágil. Não era um bar - era um espaço de confluência de energias. Um catalisador. Um satélite de aura luminosa e magnetismo irresistível. O nome exercia um poder. A porta uma autoridade. Passaram 20 anos. A história dessa porta (recriada, também em ferro negro, no Cais da Pedra) é hoje, de certa forma, também a história de um país em mutação. Uma viagem de duas décadas.Nome: Minda FonsecaData de Nascimento: 14.02.1950Profissão: DecoradoraO telefone toca num país que não Portugal. "Estou fora, em trabalho... O Frágil! Quando é a primeira festa?" Fazemos um viagem para trás de duas décadas. "Na altura eu trabalhava em cinema, era directora de produção - por isso, também, fiquei muito pouco tempo no Frágil, três meses, talvez. Mas, sim, fui a primeira porteira. Conhecia o Manel [Manuel Reis, primeiro proprietário do Frágil] da loja [de móveis] dele, na Travessa da Queimada. Ficámos amigos, o que não era difícil, porque éramos muito poucos no Bairro Alto. Penso que ele achou que eu tinha o perfil para aquele trabalho. Era o que se diz uma mulher interessante, com alguma cultura, e o cabelo comprido, muito ruivo encaracolado... Com presença. O Frágil abriu no dia 15 de Junho de 1982. Foi a Manuela Gonçalves que me vestiu. Era novidade, um acontecimento. As pessoas faziam bicha à porta para entrar, às vezes durante horas. Não porque fôssemos elitistas, mas porque o espaço era de facto pequeno e não podiam entrar todas."Nome: AnamarData de Nascimento: "Não sei, nasço todos os dias, de cada vez que o sol sobe"Profissão: "Criativa e cantora""Foi uma cumplicidade com o Manel que fez com que eu dissesse sim a uma proposta que não tinha nada a ver com os meus objectivos pessoais nem profissionais. Trabalhei lá num período continuo de 1982 a 1985. Voltei depois, duas vezes, ainda nessa década e, depois, por volta de 93. Mas não digo que fui porteira do Frágil. Eu habitei o Frágil. Era como a minha casa. A minha, do Manel, do Nanau [DJ], do Alfredo [segurança]... Entre nós arranjávamos maneira de distribuir tarefas para receber as pessoas. A porta foi a minha espada, porque não é a tarefa mais fácil nem mais simpática. Implicava sensibilidade, saber ler as pessoas. Eu tinha três critérios. Primeiro os olhos, que são a alma, depois as mãos, que representam a forma como as pessoas estão na vida, por fim os pés, o diapasão estético. Estética, naquela altura, não como agora, significava ter algo de pessoal, intransmissível. Um sinal alerta eram as meias brancas nuns sapatos 'italianotes'. Isso significava que a pessoa estava vestida como uma certa classe, uma classe com dinheiro que teoricamente entraria em todos os lugares mais reservados da capital. Ali não entravam classes, entravam pessoas. A arte, a música, a fantasia e o prazer de estar vivo eram dominantes."Nome: Margarida MartinsData de Nascimento: 11.7.53Profissão: Directora da Abraço"Trabalhei no Frágil de 1983 a 1991. Ainda em 75, talvez até 77, as pessoas achavam que um bar era uma coisa horrível. Estavam conotados com um tipo muito especifico de universo [de decadência e prostituição]. Por isso, havia pessoas que iam ao Frágil para ver macaquinhos, como num circo ou num jardim zoológico. Só que ali não havia macaquinhos, havia pessoas. Era a sala de estar de muita gente, sobretudo ligada ao meio artístico. Estar na porta não era ser um porteiro como hoje. Não era meter medo [pela força física]. Era receber. Foi um sítio muito especial de conhecimento de pessoas. Havia muitas que não chegavam a passar a cortina entre o "hall" de entrada e o interior. Ficavam ali [ao pé dos porteiros] a noite toda. Era muito divertido. Penso que tive lá um papel marcante". Confrontada com o facto de, em meados da década de 90, no Bairro Alto, a pior ofensa que se podia fazer a uma empregada de bar antipática ser dizer-lhe "És pior que a Guida Gorda!", Margarida Martins lança uma gargalhada profunda, prolongada: "Pior que a... [risos] Adoro!"Nome: Ricardo VasconcelosData de Nascimento: 19.02.67Profissão: Arquitecto de interiores"Comecei a frequentar o Frágil aos 14 ou 15 anos. Ficava sempre à porta, ao pé da Guida, que engraçava comigo. Foi ali que percebi, em certa medida, quem eu era, através de pessoas com quem partilhava um certo estar. Quando, em 1991, regressei de seis meses de viagem pelo Oriente, voltei também ao Frágil. Como tinha acabado de chegar a Portugal, com 24 anos, não tinha grandes responsabilidades profissionais, e, uma noite, olhei para o Manel e disse-lhe: "Passo tanto tempo aqui à porta que mais valia empregares-me". Comecei no fim-de-semana seguinte. Fiquei de 1991 até o espaço ser passado aos novos donos. Era o miúdo que sucedia a todas aquelas mulheres imensamente carismáticas - o único homem que passou por aquela porta. Acho que deixei um bocadinho de fazer aquela coisa antipática do 'És conhecido entras, não és ficas à porta'. Acreditava que as pessoas não precisavam de serem famosas, bastava fazerem um sorriso. Há quem ainda deva achar que fui eu que destrui o Frágil!! [risos] A verdade é que estávamos a ficar longe dos anos 80. A noite estava a democratizar-se. Foi como uma espécie de capacidade de apreender o espírito do momento, é inexplicável. Deixar de ser inacessível mas ao mesmo tempo fazer as pessoas perceber que havia a respeitar a herança de um certo estar. Fui simplesmente verdadeiro, natural. É o meu legado."

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