O enigma humano

Desde a sua revelação algo tardia em 1972 (com "A Raiz Afectuosa", título emblemático no qual se condensa a sua busca simultânea de raízes e afectos), António Osório tem vindo a oferecer-nos uma das obras mais singulares da poesia portuguesa das últimas décadas.

Apesar de na época actual a ideia mais generalizada sobre a poesia continuar a associá-la à expressão de sentimentos carregados de uma grande dose de "pathos" (ainda fruto da herança romântica), surgem por vezes certos autores mais sóbrios, mais discretos, portadores de uma fala propositadamente menos enfática e por isso talvez mais próxima da tradição clássica onde mergulham as origens da nossa cultura.Creio ser este o caso de António Osório (n. 1933), que, desde a sua revelação algo tardia em 1972 (com "A Raiz Afectuosa", título emblemático no qual se condensa a sua busca simultânea de raízes e afectos), tem vindo a oferecer-nos uma das obras mais singulares da poesia portuguesa das últimas décadas. Sem se afastar muito do seu universo de realidades aparentemente simples ou por vezes quotidianas, nem do seu estilo sereno e acessível a qualquer leitor, este novo livro aprofunda-os e traz consigo alguns aspectos ligeiramente diferentes. Procuremos ver porquê.Comecemos desde logo pelo título, já que em António Osório os títulos abrem quase sempre caminho à leitura. "Libertação da Peste" parece aludir a um desejo de fuga a certos males, doenças ou enfermidades do mundo em que vivemos, simbolizados por uma palavra como a "peste", cujas conotações negativas se mantêm vivas ainda hoje. Numa breve nota final (na badana do livro), explica o autor que "a poesia liberta da peste do tempo, porque é a palavra que aproxima e purifica os homens, os de ontem, de hoje, de sempre". Estamos, pois, em face de uma vontade de aproximação, de partilha e de purificação, ou seja, de um propósito de certa forma moralizador, aliás essencial para compreender o desígnio mais profundo da escrita de António Osório, que neste livro chega a encarar a poesia como consolação: "Perante a certeza do fim, os gregos, de todas as classes, precisavam de mitigá-lo com a consolação da poesia" (p. 91).Este excerto foi retirado de um texto em prosa sobre "epigramas gregos" e serve para enunciar desde já duas características que individualizam este volume em relação à maioria das anteriores obras do poeta: refiro-me, por um lado, à presença de numerosos textos escritos em prosa - quer narrativos, quer mesmo com laivos ensaísticos - e, por outro lado, à predominância de temas e motivos ligados à Grécia antiga, uma "Grécia secreta" que surge aqui, por exemplo, através dos epitáfios tantas vezes anónimos e gravados há milhares de anos em pedras tumulares: "O lamento alterna com a malícia, a elegia com a observação cáustica. O mundo dos mortos fervilha de vida, de nobres ou impiedosos sentimentos, representados quase sempre de forma directa, concisa. Os epitáfios ficavam inscritos na pedra dos túmulos, a expressão tinha de ser breve e aguda" (p. 84).Deve dizer-se, todavia, que a Grécia evocada neste livro ultrapassa a visão apolínea (e um tanto estereotipada, aliás...) da paisagem física mais habitual, com as suas ilhas, os seus templos, o céu e o mar azuis, etc. O que aqui está em jogo é também o mundo da chamada "Magna Grécia" - extensivo à Sicília e ao Sul da Itália - e, acima de tudo, uma dimensão ética legível no plano do comportamento humano e em algumas figuras reais ou mitológicas que o personificam. Veja-se o poema de abertura, alusivo a Ésquilo: "Ésquilo esteve aqui e viu em Taormina / a montanha de neve e a boca em fogo / do Etna, e o fumo perdendo-se no céu / como um falcão. Da Magna Grécia, / das cidades de Naxos, Agrigento, Gela / e Siracusa, haviam chegado os convidados. / Sacrificado o bode expiatório, / do nascer ao pôr do Sol, à multidão, / com todos os escravos e cativos, / eram oferecidas três tragédias e uma comédia. // Ao longo da Festa das Flores, / (...) / a voz dos actores, ampliada pela brisa / do Mar Jónio, acompanhava / o destino dos heróis e o enigma dos homens" (p. 19).É precisamente do eterno "enigma dos homens" que nos fala toda a escrita de António Osório, cuja atmosfera extravasa do universo grego e desce com frequência à época contemporânea, por exemplo no extenso testemunho /ensaio que dedica à memória do poeta italiano Eugenio Montale (talvez o mais longo de toda a colectânea) ou nas evocações pessoais de personalidades como as de António Sérgio, Ángel Crespo ou Cecília Meireles, que o poeta conheceu e a respeito da qual salienta uma das suas crónicas de viagem - "Encontros", de 1943: "É uma das grandes crónicas de Cecília, à altura dos melhores poemas, e com esse segredo de serem escritas como cartas íntimas, cheias de confidências, de alegrias ou mágoas desvendadas ao leitor. Vale não sei por quantos doutos estudos e rançosos discursos" (p. 94).Tal como já acontecia em "Crónica da Fortuna" (Quetzal, 1997), este não é apenas um livro de versos, estando também recheado de pequenas narrativas, situadas algures nesse terreno dúbio entre a memória e a imaginação, mas sendo capazes de nos restituir, ainda que fragmentariamente, algumas histórias baseadas em episódios da vida quotidiana e nas fascinantes personagens que os viveram, implicando geralmente uma lição, um subtil fundo moral. Por aí vemos desfilar, entre outros, um engraxador oriundo da Beira Alta (pp. 20/21), a "irmã Gina" (pp. 24/26), um típico avarento (pp. 28/30), um pobre anão, antigo saltimbanco e agora um vagabundo sem abrigo (pp. 43/48) ou ainda toda uma família de pavões com quem o poeta consegue estabelecer uma relação afável: "Eu procurava captar-lhes a confiança. Chamava-os para perto de casa, comecei com pedaços de milho, que os deixavam tão indiferentes que nem me olhavam (...). Mudei de estratégia: miolo de pão, fresco, lêvedo, cozido em forno de lenha, puro, pão caseiro. Desprezado de início, tornaram-se uns gulosos" (p. 111).Já quase a terminar, gostaria de chamar a atenção para esta proximidade da natureza, aliás paradigmática da obra de António Osório, que há algum tempo nos deu um "Bestiário" (1997) e cuja humilde respiração acompanha não somente os animais e as plantas, mas igualmente toda a fauna e flora humanas que compõem isso a que chamamos "sociedade" - palavra que neste caso não deve representar uma abstracção para uso estatístico, mas, pelo contrário, um conjunto muito concreto de homens e mulheres cujo enigma esta escrita vai insistindo em interrogar e, se possível, compreender, já que, como na célebre fórmula de Terêncio, nada do que é humano lhe é estranho. Por isso se trata aqui de natureza, mas também de cultura - uma cultura que para o Ocidente poderá ter nascido na Grécia, mas que ao longo de mais de dois milénios foi quase sempre um meio de nos libertarmos da peste e nos deixou muitos motivos de fraterna gratidão, numa dívida que nunca será completamente saldada, por exemplo quanto ao dom da música:"Não sei como agradecer o que lhes devo. / Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven, / Schubert, Chopin. E ainda Albinoni, / Cimarosa, Vila-Lobos, Rodrigo. / Cânticos gregorianos, espirituais / negros, canções sofridas / de Lacerda. Certas árias, cantigas / de amor, os cantos, os coros primordiais. // Íntimos como um poema que retorna, / intacto, palavra a palavra, / o coração acompanha-os. // A casa e as paredes de pedra, a mesa, / os livros, recebem a purificação. / Os infortúnios e as angústias / de quem me antecedeu, e as minhas, / ficam menos pungentes; e as alegrias, / são infinitas as alegrias / da hospitalidade mútua e fraterna. // Aberta a janela ao deus / acolhedor e comovente, o jardim / também ouve em surdina, e as árvores, / os habitantes que voam, as cigarras, / os pombos, a velha glicínia. A grande / rata passa, foge e esconde-se, inocente. / Uma mão amiga limpa e perdoa" (pp. 67/68).

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