Torne-se perito

O bom e o mau legado da UNTAET em Timor-Leste

A garantia da paz e segurança em Timor-Leste , o apoio humanitário em diversas áreas, a realização de duas eleições e a criação e funcionamento dos poderes políticos, judiciais e militares são os pilares do trabalho da Missão Transitória das Nações Unidas para Timor-Leste (UNTAET). A um dia de terminar o seu mandato, as Nações Unidas têm razões para se gabarem de alguns feitos nesta sua missão histórica, mas não deixam de sair com algumas manchas no cadastro, que motivaram sempre queixas dos timorenses ao longo dos dois anos e sete meses do seu mandato. As principais vão para as áreas da reconstrução física do território e do planeamento estratégico.Na folha de feitos que recentemente apresentou, a UNTAET deixa isso claro no alinhamento que faz dos mesmos. Começa pela paz e segurança, conseguida com grande mérito das forças militares dos muitos países que integraram a força de paz, quando se temia que esse poderia ser um dos principais problemas.A realização de eleições livres e absolutamente pacíficas e a criação de um governo transitório vêem logo a seguir. Sem dúvida mais uma grande e reconhecida vitória, num trabalho enorme que envolveu o registo de 742 mil timorenses, naquele que será durante alguns anos o cadastro da população. A ONU tem ainda um lote importante de medidas das quais se pode gabar: o programa nacional de educação cívica, que envolveu o treino de 5500 dirigentes locais; a normalização das relações com a Indonésia e a criação da Força de Defesa de Timor-Leste e da sua polícia; o estabelecimento de um sistema judicial e legal, a criação da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação para avaliar violações de direitos humanos cometidas no território e a criação de uma Autoridade Fiscal Central (precursora do ministério das Finanças) e da Autoridade Bancária de Pagamentos.Logo a seguir, a UNTAET apresenta um número de medidas em que o anúncio de sucesso merece vários reparos. Diz a ONU na área da educação que o trabalho desenvolvido permitiu que, actualmente, 700 escolas primárias, 100 secundárias, 40 do ensino pré-escolar e dez técnicas estejam a ser frequentadas por 240.000 alunos. Esquece a ONU de dizer que a maior parte das escolas não tem condições nenhumas - em muitas os alunos sentam-se no chão e quase não têm material escolar ou possibilidades de o comprar. Que quase nada fez na área da formação de professores e que ignorou quase por completo o ensino e a divulgação da língua - o português - que os timorenses escolheram como nacional. Basta lembrar que a maioria dos seus documentos não tinha tradução em português, apesar de considerar que essa era uma das línguas oficiais da sua missão.Diz também a UNTAET que reconstruiu 32 grandes edifícios públicos (sete deles ainda estão em obras), criou a Rádio UNTAET e a Televisão de Timor-Leste (TVTL) e recuperou serviços públicos base, como a distribuição de água e de electricidade.Pouco, muito pouco, disseram sempre os timorenses que viram a quase totalidade do seu país destruído. De facto, a UNTAET deixa a maior parte dos edifícios por reconstruir, quase nada fez na área do saneamento básico e parte com a maioria da população a viver em condições deploráveis. Não só nada fez como não deixa qualquer trabalho iniciado ou estratégico para o futuro governo timorense.Acrescenta depois o documento que as Nações Unidas iniciaram um programa de reabilitação das estradas que vai abranger 1000 quilómetros. Iniciar, iniciou, mas muito devagar. Muitas das principais estradas do território estão muito degradadas e algumas delas até cortadas, devido a buracos impossíveis de transpor, ou a pontes que caíram e ninguém sabe como vão ser reparadas. Nas zonas rurais, diz a UNTAET que reabilitou dois terços da terra arável e que importou vacas e búfalos. Verdade, mas isto quase nada mudou na vida dos pobres agricultores porque a ONU não investiu no ensino, na modernização do sector, na mudança de mentalidades, na criação de formas de escoamento de produtos das regiões mais férteis.Na área da saúde, a ONU diz apenas que criou um programa de vacinação. Mais uma vez verdade. Só que este é um dos sectores mais carentes no território. Faltam médicos, enfermeiros, hospitais, clínicas em áreas urbanas e rurais. Faltam medicamentos, aparelhagem médica de toda a ordem. Fica por fazer um planeamento estratégico, e morrem crianças e adultos devido a má alimentação, diarreias, doenças cutâneas, malária e tuberculose.A UNTAET apoiou ainda pequenas empresas de pesca, providenciando redes e alguns barcos. Esta última glória que a UNTAET conta merece a revelação de uma história tão ridícula como emblemática de boa parte do trabalho da ONU: as Nações Unidas ofereceram há não muito tempo os tais barcos e as tais redes a alguns pescadores no distrito de Baucau. Os homens fizeram-se ao mar e pescaram como nunca o tinham feito. Em vez de algumas dúzias de peixes, encheram várias caixas. Nunca se tinha visto tanto peixe num só dia naquela pequena vila de pescadores. Conclusão: a maioria foi para deitar fora. Não havia gente para comer tanto peixe. Não havia forma de o transportar para outras aldeias. Não havia forma de o conservar. Acabaram por deitar o peixe fora. Estragou-se.

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