Um livro com cem livros lá dentro

Na capa, pétalas sobre pétalas de rosas vermelhas. E lá dentro, nas páginas pares, fotografias de escritores, às vezes rodeados de livros, outras, sobrepondo-se a quadros pendurados nas casas que habitam, que habitaram. Fumando cigarros, cachimbo, cigarrilhas. Com a caneta nas mãos e papel. Sentados num banco de jardim, sentados no jardim, num descampado, num café, numa esplanada. Ou simplesmente de frente para a câmara. Nas páginas ímpares, há imagens de primeiras edições de "100 Livros Portugueses do Século XX", seleccionados por Fernando Pinto do Amaral, poeta, professor universitário e crítico literário do PÚBLICO, numa edição do Instituto Camões. É um livro para ler mas também para ver, mexer, fruir. Para servir de incentivo à leitura dos outros 100 que estão lá dentro. Tal como quando comissariou a exposição e edição de "Cem Livros do Século" - projecto integrado no Festival dos 100 Dias, da Expo 98 -, Pinto do Amaral afirma não pretender estabelecer o cânone do século XX, por isso escolheu não "os cem livros" mas "cem livros". "Não me passa pela cabeça dizer que são os 100 livros do século, até porque não se pode dizer, neste momento, quais são. Qualquer um tem mérito para estar aqui, mas podiam também estar muitos outros. A nossa literatura foi mais rica durante o século XX do que apenas estes100 livros."Foram excluídas as obras de filosofia, ciências sociais ou humanas e de "todos os territórios do pensamento", tendo a selecção ficado restringida à literatura, repartindo-se entre narrativa (45), poesia (40), ensaio literário (6), teatro (4) ou infanto-juvenil (3). "Ainda pensei em incluir obras variadas mas depois era tanta coisa que a literatura ficava mais diluída. Optei por prosa, poesia, algumas peças de teatro e ensaios literários. Achei que a 'História da Literatura Portuguesa' [de António José Saraiva e Óscar Lopes] e 'Teoria da Literatura' [de Aguiar e Silva] deviam figurar, mas são meros exemplos", salienta, acrescentando que nesta área são "praticamente os únicos que existem".Uns foram seleccionados pelo seu mérito literário, outros pelo impacto histórico que provocaram, e há os que reúnem os dois critérios, como "O Delfim", de José Cardoso Pires, "A Sibila" de Agustina Bessa-Luís, "Memorial do Convento", de José Saramago, ou "As Mãos e os Frutos", de Eugénio de Andrade, exemplifica Pinto do Amaral."Queria que os leitores reconhecessem uma série de livros que já tinham lido e que não fosse uma lista demasiado subjectiva, baseada no meu gosto pessoal. É claro que, em certos casos, não abdiquei disso, assumo um lado mais subjectivo, como por exemplo a obra da Maria Gabriela Llansol, uma autora conhecida por pouca gente, ou outros casos de autores mais antigos que não são muito lembrados, como o poeta Afonso Duarte."Exemplo de escolhas baseadas no impacto histórico são as obras "Gaibéus", de Alves Redol, "na altura, um livro emblemático para o neo-realismo" - o autor escreveu outro "claramente superior", "Barranco de Cegos", sublinha - ou "Retalhos da Vida de Um Médico", uma obra de que Pinto do Amaral gosta menos do que de outras de Fernando Namora, mas o número elevado de edições, as adaptações à televisão e ao cinema tornaram-na incontornável. Há ainda o caso de "A Selva", de Ferreira de Castro, traduzido em diversas línguas e "um dos mais lidos na geração dos nossos pais ou dos nossos avós, embora haja quem tenha muitas reservas quanto ao mérito literário de Ferreira de Castro".E há escolhas polémicas? "Algumas obras não são muito óbvias. Por exemplo, o romance 'A Origem', de Graça Pina de Morais, é belíssimo, mas sinto que pode ser uma escolha polémica na medida em que não é evidente." Quanto às obras excluídas, Pinto do Amaral afirma: "Há tantas...! É muito fácil dizer que há livros que poderiam estar aqui e não estão, mas é mais difícil apontar o livro que saía para esse entrar..." A selecção abre com "A Cidade e As Serras", de Eça de Queirós - obra escrita ainda no século XIX, editada, postumamente, em 1901, mas que Pinto de Amaral quis incluir como homenagem a Eça - e fecha com "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura", de António Lobo Antunes. Não há antologias colectivas, nem repetições de um mesmo autor - Fernando Pessoa é representado pelo ortónimo e heterónimos. Há, no entanto, uma excepção: Maria Velho da Costa, que está representada com "Maina Mendes", obra "incontornável", e com "Novas Cartas Portuguesas", de que é co-autora com Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, "um livro sui generis, ímpar", que "não poderia deixar" de estar na lista. Poucos são os livros datados do início do século XX, porque a maioria ainda surge colada ao espírito do século anterior. Também não foram incluídas obras de jovens autores (Clara Pinto Correia, nascida em 1960, é a escritora mais nova, representada com "Adeus, Princesa"). "Nos últimos anos houve grandes revelações, e de pessoas muito novas, mas ainda não há distância suficiente", refere Pinto do Amaral.Os textos são curtos, contêm informações essenciais sobre obras e autores, houve alguma preocupação didáctica mas este livro não foi concebido a pensar em eruditos, académicos: o objectivo é a divulgação da literatura portuguesa, quer internacionalmente, quer nacionalmente (a primeira edição, de1400 exemplares, é em português e inglês, está a ser feita uma segunda de mais de quatro mil, e estão previstas edições bilingues em castelhano e francês). "Procurei escrever textos para que o leitor ficasse com uma ideia de cada um dos 100 livros, não tive a preocupação de dar bibliografia acessória, estudos, etc. No fundo, é também um livro lúdico."

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