Robert Altman, pronto a servir

As classes altas caçam, os criados servem, quem transgride, paga, quem morre sai de cena. É outra forma de descrever um mistério policial, à volta de um assassínio, passado nos anos 30, numa casa de campo inglesa, tudo visto do ponto de vista da criadagem. "Gosford Park"

Acabou de fazer 77 anos. Não é o realizador mais velho em actividade, mas é dos mais ágeis e virulentos. "Gosford Park" é mais um exemplo, numa carreira cheia de mudanças estilísticas, da sua fobia à repetição. É um filme passado numa grande casa de campo inglesa, em 1932, um cenário aparentemente excêntrico a um realizador americano.Depois da country, em "Nashville", de Hollywood, em "O Jogador", da moda, em "Pronto a Vestir", disseca agora o sistema de classes britânico, numa história de assassínio e mistério que podia ter sido tirada de Agatha Christie. Provavelmente, tinha que ser um estrangeiro a fazê-lo - como o taiwanês Ang Lee abordou o universo, para ele estranho, de Jane Austen, em "Sensibilidade e Bom Senso"."Quando quero começar um projecto, procuro algo que nunca tenha feito", explica o imponente realizador, na sua pausada pronúncia americana. "Já nem sei quantas vezes me pediram para fazer 'Mash II', ou 'Os Americanos II', mas tinha receio de, ao aceitar, aborrecer-me e fazer por chegar tarde ao trabalho... Estou continuamente em busca de novos géneros. Nunca tinha feito algo do tipo Agatha Christie, com aquele ambiente de festa e alguém a ser assassinado, na Inglaterra dos anos 30".O cenário é um fim-de-semana prolongado em Gosford Park, palacete de campo de Sir William McCordle (Michael Gambon) e da sua elegante esposa, Lady Sylvia (Kristin Scott-Thomas). A narrativa serpenteia à volta das fraquezas desta família, dos convidados e da criadagem, que nos intervalos das sumptuosas refeições se envolvem nos abismos ancestrais de ressentimentos, trivialidades, ganância e sexo. Muitas das arrogantes personagens aventuram-se escada abaixo, para o mundo dos criados, onde também é importante o que se passa da cintura para baixo. E quem matou? É a observação da natureza humana que fascina Altman. "Não é um filme sobre quem matou. É um filme sobre 'quero lá saber quem matou!". Eles todos o fizeram", zomba secamente.a nata. Reuniu a nata dos talentos britânicos, incluindo Maggie Smith, Michael Gambon, Jeremy Northam, Alan Bates, Helen Mirren, Emily Watson, Derek Jacobi e Richard E. Grant - pagou-lhes pouco, insistiu que estivessem presentes durante quase todo o tempo de filmagens e eles adoraram cada minuto. "Foi a melhor experiência que tive", assegura. "Cerca de 85 por cento do meu trabalho é feito quando escolho os protagonistas, e realmente queria estas pessoas. Podiam dormir todas as noites nas suas próprias camas, e o ambiente não era do tipo 'ir para as filmagens'. Alan Bates foi quem mais tempo trabalhou, 10 ou 11 semanas, e nas primeiras sete só estava na retaguarda a fazer de mordomo, como se fosse um extra. Só nas últimas quatro semanas é que filmámos as suas cenas. Não imagino um americano a sujeitar-se a isso".O cenário "upstairs-downstairs" não é para ser confundido com as séries televisivas. Nem para ser visto através de óculos cor-de-rosa dos devotos anglófilos, como James Ivory e Ismail Merchant. Aqui fornica-se, assassina-se e, pior do que isso, profere-se a indizível palavra f.... As pessoas diziam palavrões naquela época?."F... é uma palavra que foi introduzida em Inglaterra no século XIV e era com essa palavra que mais se praguejava. Há muitas coisas erradas no filme, mas essa não é certamente uma delas. O que está errado, por exemplo, é a loiça na qual a personagem de Maggie Smith toma o pequeno-almoço, que só foi fabricada depois dos anos 40. Mas não conseguimos encontrar a certa. Quando a princesa Michael de Kent viu o filme, a primeira coisa que me disse foi: 'Toda aquela loiça estava errada'. 'Bem', pensei, 'ela percebeu o filme'".De forma a poder capar o comportamento e diálogo na sua forma mais espontânea, Altman usou duas câmaras em simultâneo. "A câmara está sempre em movimento", explica. "Algumas coisas acontecem com as personagens quando elas estão de costas ou quando estão a sair porta fora, porque queria afastar-me da formalidade associada a este género dos filmes 'upstairs-downstairs'". E decidiu que o público deveria olhar para a acção através dos olhos de uma criada ingénua (Kelly McDonald). A jovem actriz escocesa, que funciona como o centro afectivo do filme, ficou "chocada" quando fez o casting com o americano de voz trovejante."Pensava que não lhe tinha causado grande impressão", lembra-se. "Ele é que falou o tempo todo e estava a fazer telefonemas, eu só estava sentada numa poltrona minúscula e fazia que sim com a cabeça e sorria. Depois fui-me embora. Pensei, 'acabou-se!' Mas o 'casting' aconteceu dessa forma porque a personagem que faço é assim: boa observadora, ouvinte. Altman sabia isso"Para McDonald a oportunidade de trabalhar com Maggie Smith (que rouba as cenas como uma sarcástica condessa na mó de baixo), foi a maior das honras. "Dame Maggie não tem manias. Dei-me muito bem com ela, mas havia ocasiões em que eu ficava demasiado à vontade e começava a dizer parvoíces e ela fazia-me ver isso. Tudo bem, acho que temos que ser postos na ordem", diz com uma gargalhada.O oblíquo Altman, que "não saberia dizer qual o garfo certo segundo a etiqueta britânica" (mas vive no Upper West Side novaiorquino e aproveita o mais que pode das possibilidades da vida cultural da cidade), recrutou os serviços de um antigo mordomo, de uma criada e de um cozinheiro que estiveram ao serviço nos anos 30. "A criada era uma mulher de 80 anos e era encantadora", lembra-se McDonald. "Perguntámos-lhe se não tinha sido terrível a vida nos anos 30, com a hierarquia de classes, e ela respondeu que não, que não teria querido coisas de outra maneira. Era assim que era, e eles sentiam-se seguros. Hoje as pessoas são mais infelizes porque há demasiadas possibilidades. Se não alcançamos grandes feitos, sentimos que não estamos a dar o melhor e isso faz com que vivamos sob enorme pressão".comeback. Piloto de bombardeiro durante a II Guerra, Altman tentou a sorte como argumentista, antes de acampar na televisão como realizador de "Bonanza'' ou "Alfred Hitchcock Apresenta". Só em 1970 é que se reencontrou, com a farsa anti-bélica "MASH", sobre uma unidade médica na frente da Coreia. Os anos 70 foram a década de aclamação, mas também o empurraram para o fracasso: "McCabe e Mrs. Miller", "O Imenso Adeus" e "Thieves Like Us" reformularam, ou esventraram, os géneros, e talvez por isso Altman tenha sido penalizado nas bilheteiras. Mas, em 1975, voltou à mó de cima com "Nashville". Uma obra estonteante, recebida de forma apoteótica, transformou Altman no mestre do "ensemble" americano. Trabalhando com um grupo impressionante de actores, misturou música, sátira, melodrama, pedaços da vida (utilizando a sobreposição de diálogos para dar a ideia de que o caos não podia ser interrompido pelo cinema) e paranóia política, fazendo dos palcos da country uma alegoria da psique americana.Mas os maus tempos estavam ao virar da esquina. Apesar de um "cast" ainda mas "estrelado", com Paul Newman á frente, "Buffalo Bill e os Índios" foi um falhanço, como "Três Mulheres" (bizarro estudo sobre a divisão da personalidade, com Sissy Spacek), "Um Casamento", "Quinteto" e "Popeye" (flop mais humilhante). Os anos de vacas magras foram vividos com adaptações teatrais - "Come Back to the Five and Dime, Jimmy Dean, Jimmy Dean" ou "Fool for Love", adaptando Sam Shepard. Mas depois da admiração crítica perante "Vincent e Theo'' (Tim Roth como Vincent van Gogh), deu nova volta à carreira com "O Jogador", de 1992, um pedaço de negrume hollywoodiano. "Os Americanos", amálgama de histórias de Raymond Carver, foi aclamado, mas o azedume de "Pronto-a-Vestir" deu azo a menor admiração. A dois filmes do género "southern gothic", "The Gingerbread Man'' e "Cookie's Fortune"', seguiu-se "Dr. T and the Women", em que punha Richard Gere a espreitar para o eterno feminino. "Gosford Park" volta a enfatizar a sua habilidade em experimentar com um "cast" com que outros realizadores apenas podem sonhar. É verdade, o filme evidencia a sua habitual misantropia. Mas sem o, também habitual, azedume em relação às personagens, o divertimento está banhado em melancolia. Ao chegar ao fim dos 70, Robert Altman consegue que se volte a dizer que este é um "comeback". Ele responderá sempre: "Nunca me fui embora".

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