Glória a Vasco

Pode um livro de história, centrado na vida de um desconhecido, tornar-se um sucesso editorial? "Glória", de Vasco Pulido Valente, chegou rapidamente à segunda edição.

Ao desenterrar do anonimato histórico o deputado, jornalista e assassino José Cardoso Vieira de Castro, Vasco Pulido Valente utiliza a biografia como pretexto para escrever a história, não apenas do século XIX político, mas também do jornalístico, "sociológico", das relações de amizade, familiares e de compadrio, do culturalmente correcto, da "estúrdia" juvenil de Coimbra e do Porto, do crime, da justiça e dos tribunais. O autor pretendeu deliberadamente fugir do "mundo asséptico, arrumadinho, de onde tinham desaparecido a irracionalidade e a materialidade da vida" que diz ser encarnado pela chamada "história positivista" e na biografia de Vieira de Castro, figura que não ficou para a posteridade mas que, à época, era uma "das personagens mais célebres do Portugal letrado", encontrou uma fórmula de dar a ler a história do século XIX como um romance.Mas "Glória" não é um romance, é um livro de história, como enfaticamente o autor escreve a abrir o prefácio: "Este é um livro de história. Não é um livro de história a fazer de romance, nem um romance 'documental'. Convém começar por dizer isto para que não haja confusões." A utilização da expressão "como um romance" serve para exprimir com alguma clareza o prazer que constitui para o leitor comum ler a história escrita por Vasco Pulido Valente.Com "Glória", de resto, Pulido Valente cumpre o serviço público de explicar aos "indígenas", munido de múltiplas fontes e consequente aparato bibliográfico, que a política-espectáculo, ao contrário do que às vezes se pode deduzir de alguns cânticos virginais, não começou com Santana Lopes.No seu vácuo ideológico, oscilando ao sabor do que julga serem as suas conveniências pessoais, tendo como objectivo omnipresente alcançar a "glória", José Cardoso Vieira de Castro é um protótipo do "parlamentar inútil" do século XIX, tão glosado por Eça de Queiroz e contra quem engrossará a propaganda republicana. É a oratória, que fará os "analistas políticos" contemporâneos compararem-no frequentemente a José Estêvão, considerado o orador dos oradores da época (é o único deputado que tem uma estátua à porta da Assembleia da República), é a oratória o seu instrumento e o único "conhecimento" de que verdadeiramente dispõe. Um dos discursos que deixará o "país letrado" aos pés de Vieira de Castro é um ataque feroz ao governo, acabado de formar, presidido pelo duque de Loulé. Era assim que Vieira de Castro sonhava alcançar a glória: "A organização deste gabinete é mais um pecado na licenciosa existência política do sr. duque de Loulé (...) O ministério nasceu de uma facção; de uma facção que eu não sei onde está; de uma facção onde eu não prostituo o nome de nenhum dos partidos políticos desta terra; que eu estou longe de chamar histórica [uma tentativa de separar o duque de Loulé do Partido Histórico, com quem, segundo afirma Vasco Pulido Valente, Vieira de Castro tencionava aliar-se] Deus me livre disso! De uma facção que se manifesta nos seus maléficos resultados; que eu não sei de que homens se compõe, porque eles sucedem-se e revezam-se nela todos os dias, como as sombras da lanterna mágica nos planos do muramento, vivendo o minuto da existência das sombras: etérea, rápida, fugaz, como a existência dos marnéis [terreno alagadiço]. Eu chamo a essa facção uma facção ducal. É uma facção do senhor duque de Loulé; é uma facção onde o amor das leis se chama sarcasticamente patuscada, e à infracção delas patriotismo; onde se decretam os hábitos de Cristo e comendas para os assassinos assalariados à boca da urna popular; onde se enfraquecem as autoridades constituídas; é uma facção onde se trabalha, lida e caminha para substituir o espírito de um só homem à vontade de um povo inteiro; é uma facção onde as mediocridades petulantes se impõem a homens eminentes, onde as fatuidades audazes lutam e trabalham para afastar da governação pública todos os homens úteis; é uma facção onde os interesses de uma seita minam e contraminam para se substituírem às afeições públicas e particulares, que em todos os países livres são o único caminho por onde se chega às primeiras funções do Governo."Todo o discurso é uma pérola novecentista. Na dificuldade de o reproduzir aqui na íntegra, não se resiste a citar mais um parágrafo: "O sr. duque de Loulé cedeu aos erros e às vaidades da sua índole. Está há uns poucos de anos sentado no seu trono inabalável, porque o sr. duque de Loulé tem trono; estamos em perene Sião! Temos dois reis!" "O pior ficava para o fim, para o ministro das Obras Públicas, João Crisóstomo [escreve Pulido Valente]. Vieira de Castro entrou em matéria sem preliminares. 'Nunca lhe falei, avalio-o como homem público e vou dizer o que ele é, para depois acrescentar que não conheço carácter político que mais se deva detestar ou abominar.""Glória" é atravessada por histórias de Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão (amigos do biografado), de Ana Plácido (que Vieira de Castro na juventude vigorosamente defende do anátema do adultério, acabando ele próprio por matar, premeditadamente, a sua mulher adúltera), de Rodrigues Sampaio (íntimo amigo de Vieira de Castro, seu maior defensor na imprensa, nomeadamente n'"A Revolução de Setembro"). O caciquismo do século XIX, a boémia "galante"-intelectual, as relações de poder, o poder emergente da imprensa, a "sociologia" do adultério (Camilo é ambivalente) fazem de "Glória" de Vasco Pulido Valente um notável retrato de uma parcela do século XIX. "Glória" é "Os Maias" em livro de história. Sem confusões, evidentemente.

Sugerir correcção