Ex-autarca foi o primeiro português a ser condenado por discriminação racial

"Dou mil contos a quem me trouxer um cigano sério" e "a maioria dos ciganos rouba". Foram afirmações como estas e outras do mesmo género que valeram a um antigo autarca do concelho de Paredes uma condenação sem precedentes em Portugal: uma pena suspensa de nove meses de prisão por dois crimes de discriminação racial.As expressões que motivaram a condenação de Armando Costa, ex-presidente social-democrata da Junta de Freguesia de Gandra, foram proferidas durante uma reunião da Assembleia Municipal de Paredes, em Fevereiro de 1997, denunciadas pelo CDS/PP do concelho e reafirmadas pelo próprio à comunicação social. Cinco anos depois, a juíza do Tribunal Judicial de Paredes que apreciou o processo condenou-o por discriminação racial.Um caso inédito em Portugal, pelo menos a crer nos comentários de responsáveis de associações que lutam contra o racismo, que não têm conhecimento de qualquer outra condenação por este ilícito (integrado no capítulo dos "Crimes contra a humanidade" do Código Penal). "Chegámos a interpor várias acções deste tipo, mas foram todas arquivadas", recorda José Falcão, dirigente da SOS Racismo, para quem esta sentença é a prova de que "finalmente se começa a perceber que as pessoas podem ser condenadas por atitudes racistas e xenófobas".Também o professor de Direito Constitucional e ex-governador civil de Braga Pedro Bacelar considerou "excelente" haver uma decisão judicial deste teor. Surpreendido com a condenação, "a primeira do género em Portugal", tanto quanto sabe, o alto-comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas, José Leitão, explica que, "para que se considerem verificados os pressupostos do crime de discriminação racial, é necessário haver dolo específico, o que cria dificuldades suplementares de prova". Esta sentença vem demonstrar que "a sensibilidade social contra a discriminação racial é cada vez mais exigente", o que "vai na linha do aperfeiçoamento legislativo nesta matéria", comenta.Os problemas judiciais de Armando Costa começaram depois de o CDS/PP de Paredes ter pedido publicamente a sua demissão, na sequência das reiteradas invectivas contra os ciganos, feitas durante a referida reunião da Assembleia Municipal de Paredes. Alguns dias depois, ouvido pela agência Lusa, este homem que presidiu à Junta de Freguesia de Gandra até Dezembro passado recusou a hipótese de se demitir, acusou o PP de "aproveitamento político" e negou ser racista, acrescentando, em jeito de defesa, que as suas declarações tinham sido feitas "na generalidade, relativamente às questões de segurança no concelho". De seguida, acrescentou: "Mas toda a gente sabe, como é referido constantemente nos jornais, que de facto os ciganos vivem muito à volta de habilidades e da droga, como se viu recentemente no caso de Oleiros, em que grande parte da família foi apanhada com droga". Aproveitou ainda para perguntar: "Já viu algum cigano a trabalhar numa empresa?". E concluiu: "Se eu estivesse a falar de Lisboa, referia-me aos negros, que lá são muitos e toda a gente sabe que roubam mais". Durante o julgamento, defendeu que as suas declarações não passaram de um "desabafo" e alegou que, à data dos factos, nem sequer sabia o significado da palavra "racista". Tentando justificar-se, argumentou que nunca foi racista, até porque teve negócios em África ("também os tinham os esclavagistas", comenta a juíza na sentença), deu emprego a uma mulher negra ("como empregada doméstica") e até pagou medicamentos a naturais de países de Leste ("Não são pessoas como quaisquer outras? Até são europeus e brancos!", insurge-se a magistrada na decisão).Apesar de "o tipo objectivo deste ilícito ser estruturalmente muito complexo", para a juíza ficou claro que as expressões proferidas pelo ex-autarca imputam "factos ou juízos de valor gravemente atentatórios da honra e consideração de dois grupos de pessoas" - "ciganos" e "negros". E tornou-se evidente que houve intenção de incitar à discriminação racial ou de a encorajar (e "a intenção é a forma mais intensa do dolo directo"), uma vez que o presidente da junta queria convencer a assembleia municipal a recusar ao povo cigano o exercício de direitos fundamentais. A própria pergunta "Já viu algum cigano a trabalhar numa empresa?" foi interpretada como um "encorajamento aos empresários do nosso país a adoptarem ou a prosseguirem políticas de emprego claramente discriminatórias". "Ninguém, e muito menos um titular de um órgão de soberania, pode ignorar que a semente da discriminação se encontra, ainda que adormecida, nas nossas populações e também no nosso tecido empresarial", comenta a juíza, concluindo que o ex-autarca difamou um grupo de pessoas por causa da sua raça, em dois momentos e circunstâncias distintas" - em reunião pública e através da comunicação social -, pelo que foi condenado não por um, mas sim por dois crimes de discriminação racial.Sublinhando que já abandonou a política, Armando Costa não se quis pronunciar sobre a sentença. "Isso são coisas do passado", disse, escusando-se a adiantar se vai recorrer da decisão."Dou mil contos a quem me trouxer um cigano sério"Armando CostaEx-presidente da Junta de Freguesia de Gandra, Paredes

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