Os policiais são a minha fraqueza

Três policiais da mesma família foram traduzidos. As três autoras são famosas e os livros são irresistíveis. Os policiais são uma fraqueza de muita gente, a melhor fraqueza que muita gente tem.

Anne Perry está no grupo restrito dos mais famosos autores de policiais. Escreve duas séries distintas, a dos livros da série Pitt e a dos livros da série Monk. Para cada uma o compromisso, com o seu agente, é escrever um livro por ano. Significa que "faz um Pitt na Primavera, um Monk no Outono", nas suas palavras (ver caixa). Actualmente, vai em cerca de vinte títulos, dos quais se venderam, por junto, uns três milhões de exemplares. Em ambos os casos são policiais "ambientados" na Londres vitoriana. Na série Pitt, da qual a Gótica acaba de traduzir o primeiro livro, "O Estrangulador de Cater Street", os crimes são investigados por Thomas Pitt, um detective da polícia de origem social modesta, e por Charlotte Ellison, uma jovem de boas famílias. Na série Monk, o herói é William Monk, agente da polícia londrina.Anne Perry tem 63 anos e publica policiais vitorianos desde os 40 anos. Podemos perguntar-nos de onde lhe vem a obsessão com a época: vem do padrasto, muito interessado na vida e na época de Jack, o Estripador. A meio da década passada, falou-se muito de Anne Perry, por motivos que não têm a ver com aquilo que escreve. Descobriu-se que ela era Juliet Hulme, uma rapariga julgada e condenada por ser cúmplice de um homicídio, na Nova Zelândia, aos 15 anos; a começar pelo "Sunday Times", todos os jornais ingleses publicaram esta história. De facto, Anne chama-se Juliet - depois de ter cumprido a sua pena, mudou de nome. "Perry" é o apelido do padrasto. Também mudou de país. Juliet ajudou a sua maior amiga, Pauline Parker, de 16 anos, a matar a mãe. O assassínio foi cometido em Christchurch. Foi, literalmente, uma porcaria: rebentaram a cabeça da senhora, batendo-lhe à vez, com um tijolo metido dentro de uma meia, até ela morrer. As meninas passaram cada uma cinco anos na prisão, em estabelecimentos diferentes, sendo o de Juliet bastante pior, do ponto de vista do conforto e do convívio, do que o de Pauline. Actualmente, julga-se que Pauline viva em Auckland, sendo uma católica devota. Juliet, ou Anne Perry, viajou para Inglaterra, depois para os Estados Unidos, e voltou para Inglaterra; actualmente vive na Escócia. Teve diversas profissões, de hospedeira de bordo a vendedora, até que foi publicada e os direitos de autor se tornaram mais do que suficientes. As duas amigas nunca mais entraram em contacto uma com a outra. Há grandes amizades que acabam assim, abruptamente.Anne Perry só falou sobre o crime uma vez, quando, depois de toda a história vir nos jornais, se justificou publicamente. A partir daí, estabeleceu que não responde a perguntas sobre nada disso. Na altura, disse que não se lembrava de nada de concreto, e sugeriu como motivo o facto de as meninas não quererem ser separadas. Os pais de Juliet iam mudar-se para a África do Sul. A mãe de Pauline não a deixava partir com os Hulme, e elas gostavam tanto uma da outra que não suportaram a ideia. O caso, que já inspirara um livro e uma peça de teatro, serviu mais recentemente para um filme com Kate Winslet - "Heavenly Creatures". Resta-nos esperar que não inspire os nossos filhos, assim Deus nos ajude.Na biografia autorizada de Anne Perry o que vem é que ela nasceu em Londres, em 1938, onde passou os primeiros anos da sua vida, e que depois viajou muito, por motivos de saúde e outros. Na adolescência, há um momento edificante que ela destaca: uma vez dirigiu-se ao pai com um problema, esperando que ele pudesse ajudá-la; mas não foi capaz de enunciar esse problema de uma forma adequada, acabando por dizer que não sabia explicar-se, embora soubesse o que queria dizer. O pai respondeu-lhe que ela não sabia, porque se soubesse, dizia. Há uma cena assim, em "O Estrangulador de Cater Street". Um homem destes tem um indiscutível pragmatismo - e Anne Perry ainda hoje considera que saber exprimir-se é uma das capacidades mais importantes que há para ter na vida.Carol O'Connell, a segunda por ordem etária, nasceu em Nova Iorque, em 1947. Não está entre os mais famosos, mas está quase. Estudou no California Institute of Arts, depois fez diversos cursos de pintura e de literatura. Durante muitos anos, antes de ganhar o suficiente com os livros, viveu de ser revisora e "copy-desk". Nos intervalos pintava e escrevia. Aos 46 anos "O Oráculo de Mallory", agora traduzido (também na Gótica), foi um êxito em Frankfurt, quando a editora Hutchinson conseguiu vender os direitos para uma série de países antes de o livro estar publicado. "O Oráculo de Mallory" foi o policial em que ela apresentou a sua polícia delinquente, Kathy Mallory; escreveu mais três policiais com ela, além de "As Filhas de Judas", que não faz parte da série Mallory e é uma história admirável e bastante assustadora (Gótica, há dois anos). Aleksandra Marínina é a mais nova - nasceu em 1957, em Lvov. Chama-se Marina Anatolyevna Alexeyeva, Aleksandra Marínina é "nom-de-plume". O pai foi inspector na Polícia de Leninegrado e a mãe é uma reputada jurista. Marínina, seguindo a tradição familiar, formou-se em Direito, e durante anos fez investigação em criminologia e estatística. Publicou dezenas de artigos em revistas especializadas. Desde 1998, o ano em que se internacionalizou - os seus policiais foram traduzidos e tiveram êxito em toda a parte -, decidiu consagrar-se inteiramente aos livros. A sua inspectora de polícia chama-se Anastasia Kamenskaya e trabalha em Moscovo. É simpática: fuma, anda sempre vestida de escuro, não tem paciência para se maquilhar e é pouco sociável. O que é que "O Estrangulador de Cater Street", de Anne Perry, "O Oráculo de Mallory", de Carol O'Connell, e "Sonho Roubado", de Aleksandra Marínina, têm em comum? Muito. Podemos fazer uma lista.A. São clássicos. Todos têm um esquema tradicional idêntico: crime; inquérito; investigação (aqui se incluem os procedimentos e a rotina de um departamento de polícia; em geral, os autores de policiais gostam de exibir a sua familiaridade com o quotidiano de uma esquadra; às vezes exageram); vários suspeitos; resolução (sofisticada, mas não impossível de deduzir). B. Os detectives são mulheres. Em "O Estrangulador de Cater Street" o detective é oficialmente Thomas Pitt, mas efectivamente é Charlotte Ellison. C. São livros de mulheres. Os pormenores, as descrições, os diálogos, as preocupações, etc., avisam-nos, como uma luzinha intermitente, da autoria feminina. Escrever isto num jornal é uma boçalidade. Ainda assim, não sou capaz de imaginar um homem a preocupar-se tanto com a sua reputação, com as suas recordações, com a sua vida interior; nem um homem psicologicamente intenso ao ponto de se tornar todo previsível e facílimo de entender. Suponho que é aceitável admitirmos, simplesmente, que há coisas que os homens fazem e coisas que os homens não fazem; e estes livros pertencem à categoria das coisas-que-os-homens-não-fazem, porque os homens não escrevem policiais destes, como não compram cereais Fitness, como não sabem vestir correctamente uma criança, como não gostam de Robbie Williams - estou, naturalmente, a generalizar. D. O preciosismo das descrições. Liga-se à alínea anterior, embora não se sobreponha, porque também há pedaços de prosa destes, embora menos, nos policiais escritos por homens. Charlotte, a heroína de Anne Perry, tem "o cabelo pesado, cor de mogno", e um "rosto forte" (por oposição a "rosto delicado", que é o que tem a irmã); para um baile formal decide-se por um vestido de "um rico cor-de-rosa vinho", que lhe fica muitíssimo bem, "com o castanho-escuro dos cabelos e a tez cor de mel. Ninguém diria azuis os seus olhos: eram cinzentos, sob qualquer luz". (A construção com "ninguém diria" é esquisita, visto que ninguém se lembrou de dizer fosse o que fosse sobre os olhos de Charlotte). Já Mallory, de "O Oráculo...", é "uma mulher muito bela e tão inteligente que chega a assustar", tem olhos que são "jóias verdes incrustradas em marfim e emolduradas por uma auréola de ouro". O cabelo é dourado. Nástia, a polícia de Marínina, tem 33 anos, e "não é bonita nem feia, simplesmente apagada, sem força, sem graça, com um rosto deslavado e uns olhos sem cor". Uma mulher sensata identifica-se logo: "Um ratinho cinzento, apagado, sem a mínima vontade de ser atraente e de chamar a atenção."E. As detectives não têm amigos, ou amigas, com quem estabeleçam relações igualitárias. Porquê? Porque não podem. Elas são únicas. F. As vítimas são todas mulheres. Mulheres que se aventuraram, sozinhas, quando o que deviam ter feito era muito fácil - bastava estarem quietas.G. Os homens têm funções essencialmente práticas. Podem ser bons, maus, protectores, condescendentes, perigosos, podem ser o que for preciso, mas fazem sempre alguma coisa. Talvez porque, na vida real, os homens são redundantes e as mulheres são intuitivas, diz o estereótipo e diz-se em termos gerais.Esta lista vai acabar aqui. Pode levar a concluir que estamos a ler versões diferentes do mesmo livro. Não é verdade. Não estamos. O modelo é que é o mesmo. Mas ler Anne Perry é viajar até àquele fantástico período vitoriano, quando se acreditava que tomar conta de pobres confortava alguém e quando se sabia que o pecado não deixa ninguém em paz desde que o Senhor o introduziu no jardim do Éden. Ler O'Connell é percorrer a nossa actualidade policial (diga-se que o livro é bom, mas não é tão bom como os outros dois, e deve ser por isso). Com Marínina aprende-se muito sobre a Rússia contemporânea. "É que mesmo os autores russos emigrados cometem erros na descrição actual da Rússia! Já sem falar de escritores como Martin Cruz Smith, o famoso autor de 'Parque Gorki'." Quem diz isto é Nástia. Na página 40 de "Parque Gorki" já ela se aborrece de morte.Enquanto aqui ninguém se aborrece, isso é garantido.

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