Ryan Adams, um génio alcoolizado

Foi um concerto fantástico com um final patético, mas nem por isso menos inesquecível. Se fosse em 1975, a célebre frase "Vi o futuro do rock'n'roll e o nome dele é Bruce Springsteen" aplicar-se-ia com tanta ou mais justiça a Ryan Adams. Um quarto de século depois, obviamente, o artista de 27 anos originário de Jacksonville, na Carolina do Norte, não pode ser considerado revolucionário. Mas é uma súmula da idade de ouro do rock, que fez dos clássicos alheios um universo próprio, ensaiado nos três álbuns que gravou com os Whiskeytown e maturado nos dois posteriores a solo. Aclamado pela crítica desde o lançamento de "Heartbreaker", em 2000, a popularidade de Adams cresceu depois disso junto do público rock americano e o recente "Gold" funcionou como primeira consagração. Já na Europa ainda não ultrapassou o estatuto de culto e a maioria teima em confundir Ryan com Bryan, o veterano cantor canadiano. Daí uma digressão europeia com uma única data ibérica, na segunda-feira passada em Barcelona, num clube chamado Bikini das mesmas dimensões do Garage lisboeta. Encheu com não mais de 800 pessoas, mas foi o género de evento excepcional que em três tempos converte um desconhecido em desejado. Os primeiros sete temas constituíram uma espantosa antologia do melhor dos anos 60/70: o arranque com "To be young" soou como uma ressurreição dos The Band; "Answering bell" deu lugar a uma vocalização reminescente do fluir idiossincrático de Van Morrison; "Touch, feel and lose" lembrou a rouquidão blues de Janis Joplin; "Rescue blues" acenou à melancolia drogada dos Stones de "Sticky Fingers"; "Oh my sweet Carolina" prestou justiça à memória de Gram Parsons; e "Firecraker" foi um epítome de todas essas referências ilustres.Ryan revelou-se um aluno criativo, nunca um desses novos velhos que povoam os "tops" ingleses. O talento, mas também a autenticidade, a paixão e a urgência com que reciclou os grandes exemplos do passado foram os trunfos que o subtraíram ao estrito saudosismo. A música podia ser velha, mas foi renascendo à medida de um drama pessoal, que, se calhar, não é drama nenhum, mas a vontade de mergulhar de novo no estilo de vida "sexo, drogas e rock'n'roll".O momento "sexy" foram três baladas no "encore", interpretadas pelo cantor a sós com a sua guitarra. Um misto de intimismo e abandono egocêntricos, típicos de anti-herói "americana", a enternecer a escassa secção feminina, mas a gerar todas as cumplicidades com a facção bem mais alargada de machos solitários da plateia. Antes e depois disso, no entanto, a actuação de Adams foi menos poesia que desvario, o que na circunstância terá tido mais a ver com álcool que drogas. Ao fim do primeiro quarto de hora já Ryan aviara uma litrada e fumara meio maço. Quando chegou à oitava canção, "Lovesick blues", engatou no disparate e trocou a letra original por uma algarviada indecifrável numa voz de cana rachada. Dez minutos depois alguém lhe perguntou se estava bem, ao que ele respondeu que não, porque se estivesse estava na plateia, não em palco. Deixa que aproveitou para pedir copos directamente do bar -vodka, licor e até um cálice de jerez -, mas a empregada teimou em não o atender. Irritado, tirou da carteira e fez menção de pagar, porém, não teve melhor sorte até que um segurança lhe voltou a encher a garrafa. Em "New York, New York", a canção que supostamente retrata o seu romance com a actriz Winona Ryder, deu por completo a volta ao original, primeiro numa versão blues depressiva, depois num rockabilly combustivo. Mais à frente, na secção acústica, quando um engraçadinho lhe cantou "Everything I do, I do it for you", de Bryan Adams, amuou e mandou a banda para o palco fazer o que lhe desse na veneta. O que incluiu desde "trash metal" a funk mutante.O maior golpe de teatro estava, porém, reservado para o final com "Tina Toledo's Streetwalker Blues". A banda embarcou numa furiosa "jam" de blues eléctrico de fazer inveja aos Primal Scream, a meio da qual Ryan caiu redondo no chão. Depois atirou-se umas boas três vezes para cima do público, continuando sempre a tocar sem que ninguém percebesse bem o quê, e o tema acabou no mais absoluto caos. Ryan bem queria dar mais, só que lhe faltava qualquer coisa... Foi o que se apurou quando um dos seus músicos regressou ao palco para ameaçar num castelhano macarrónico que se não lhe devolvessem o sapato não haveria mais música. E não houve mesmo.

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