Grandeza de Gilles Deleuze

Gilles Deleuze não gostava muito de viajar. Dizem (fui buscar esta informação a René Schérer) que tinha um quarto na Île de France para encontros mais ou menos privados, e aí as paredes estavam forradas com postais: à sua volta multiplicavam-se as paisagens do mundo. Isto lhe bastaria. Uma ou outra deslocação à América (em 1975, convidado a ir a Columbia) e foi tudo. Não gostava de colóquios (apenas organizou um sobre Nietzsche), não gostava de debates públicos (e costumava dizer que, sempre que lhe faziam uma objecção, a sua vontade era responder: "de acordo, de acordo, passemos a outra coisa").Gilles Deleuze não pretendeu criar uma escola de pensamento deleuziano. Fiel à sua concepção de que a gente vai sempre à procura nos textos dos outros de instrumentos para continuarmos a pensar por nós, nunca quis ser mais do que isso, orgulhosa e prosaicamente: uma caixa de instrumentos. Os primeiros livros que saíram sobre Deleuze tinham esse problema: eram demasiado miméticos, repetiam o texto como se ele não estivesse já escrito. Até que os seus autores se emancipavam e passavam a fazer outra coisa, às vezes com Deleuze, outras já sem ele, livremente. A proximidade com o texto deleuziano podia tornar-se mortífera. Muitos não escaparam a essa sedução funesta.Por tudo isto a influência de Deleuze no pensamento contemporâneo foi mais lenta do que a de Foucault, do que a de Derrida, do que a de Lyotard, do que a de Bourdieu ou mesmo, num plano obviamente diferente, do que a de Baudrillard ou a de Virilio. Mas isso não impede que ela seja hoje extremamente forte - cada vez mais forte, cada vez mais inevitável, cada vez mais pregnante. Há um Deleuze que pode ser assimilado pelos pensadores da Internet (com o risco de o reduzirem a redes puramente extensivas), há um Deleuze no plano da arte, como há um Deleuze no campo da reflexão sobre a biologia (veja-se, por exemplo, os trabalhos de Keith Ansell Pearson), como há ainda um Deleuze fortemente político (Paul Patton escreveu "Deleuze and the Political", para uma colecção da Routledge) que emerge sobretudo no monumental "Empire" de Toni Negri e Michael Hardt (a quem se deve um estudo filosófico sobre Deleuze, já traduzido no Brasil). Entre nós, por exemplo, José Gil tem tido um papel fulcral na propagação da influência deleuziana, em particular nas leituras inovadoras que tem proposto de Pessoa (veja-se o prefácio a "Diferença e Repetição" na Relógio d'Água). Mas Manuel Maria Carrilho andou na sua órbita e foi mesmo um dos seus primeiros tradutores. E Sousa Dias escreveu ensaios onde a influência era manifesta. Há ainda um Deleuze em língua portuguesa no Brasil, com uma lista impressionante de nomes que vão desde a psicanálise (Joel Birman, Suely Rolnik) até à literatura (num Haroldo de Campos, por exemplo), passando pela sociologia (Laymert Garcia dos Santos) ou pela filosofia (Luís B. L. Orlandi, Bento Prado Jr. ou Peter Pál Pelbart, Scarlett Marton ou André Parente). E como Deleuze teve áreas muito particularizadas de interesses (é um dos primeiros filósofos a pensar o cinema, por exemplo), existem grupos específicos para o desenvolvimento de perspectivas nessas áreas: veja-se os volumes colectivos intitulados "Aprés Deleuze. Philosophie et esthétique du cinéma" na Dis-Voir, "Le cinèma selon Deleuze" nas Presses de la Sorbonne Nouvelle, por exemplo. E tal como há um Deleuze do cinema há um Deleuze da música, exuberante e um pouco delirantemente ilustrado por Richard Pinhas em "Les larmes de Nietzsche". Ou um Deleuze na arquitectura, de que se pode dar como exemplo, entre muitos outros, "Construções" de John Rajchman, suponho que anunciado para a Relógio d'Água. E há os múltiplos "sites" deleuzianos, onde com demoníaco fervor informático, se vão acumulando informações, inéditos, textos de cursos, etc.É neste contexto que ganha particular relevo um acontecimento muito recente: um novo livro com o nome de Gilles Deleuze como autor. Depois da sua morte trágica em 4 de Novembro de 1995, surgiram brevíssimos textos inéditos (embora um deles seja uma síntese admirável da sua vida filosófica) mas ficámos na frustração absoluta de não termos uma linha do então anunciado "Grandeza de Marx" que Deleuze queria redigir antes de passar a outra coisa. Donde, confrontávamo-nos com um silêncio espesso, que tinha a ver com as próprias regras que o filósofo havia imposto: nenhuma publicação de inéditos ou de textos póstumos.O que acaba de sair é outra coisa: um volume de mais de 400 páginas intitulado "L'île déserte et autres textes", nas edições Minuit, e onde se incluem peças dispersas que surgiram entre 1953 e 1974, numa edição preparada por David Lapoujade. Há pequenos depoimentos, intervenções breves, entrevistas, textos de fundo, até mesas redondas. Como Lapoujade observa, esta sequência permite entrever a emergência de certos temas e a abertura de novos ciclos - mas o conjunto permite sobretudo afirmar a coerência profunda de um pensamento e o modo como determinados encontros (em particular, com Félix Guattari), se inscrevem nessa coerência.Ao mesmo tempo, o "Magazine littéraire" consagra o seu número de Fevereiro a "Gilles Deleuze - philosophie, esthétique, politique", num conjunto de textos extremamente bem organizado e onde colaboram nomes fundamentais para o conhecimento da irradiação de Deleuze no pensamento contemporâneo. Temos assim ensaios de Alain Badiou (que muitos "delezianos" contestam, e daí interessantíssimas polémicas com José Gil ou Eric Alliez), de Claude Imbert, de Jacques Rancière ou de Raymond Bellour. E para nós, portugueses, um documento precioso: uma carta que Manoel de Oliveira escreveu a Deleuze em 1991. É verdade que quando Oliveira acabava a montagem de "Party", na visita habitual que lhe fiz no estúdio dos arredores de Paris, encontrei Oliveira a ler "Critique et clinique", e a muito regianamente indignar-se com a ideia de se poder equiparar Jesus Cristo a um "personagem conceptual" como Deleuze pretendia que Zaratrustra era...Torna-se assim particularmente significativo o lançamento de livros que permitem àqueles que descobrem neste momento a grandeza imensa desta obra fazer em relação a ela uma iniciação rigorosa, atraente e eficaz. É o que sucede com o bem estruturado "Gilles Deleuze" de Claire Colebrook, preparado para a belíssima colecção "Critical Thinkers" da Routledge. E, em lingua portuguesa, com um texto que é mais do que uma iniciação: o de Jonh Rajchman, com o título de "As Ligações de Deleuze", publicado já em 2002 pela Temas & Debates (numa colecção excelente, em que só o nome destoa um pouco dos conteúdos: chama-se "Memórias do Mundo", o que parece apontar para outras paragens). Sobre este livro extremamente estimulante falarei na próxima semana. Mas não gostaria de terminar sem uma pequena confidência: disse uma vez, a propósito de um concerto de Caetano Veloso e Maria Bethânia, que nenhuma música popular nos dava tanto uma sensação de urgência de vida como a música brasileira. Gostaria de dizer exactamente o mesmo a respeito de Deleuze.

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