Eu sou o maior arquitecto do mundo

O Centro Cultural de Belém vai inaugurar na próxima quinta-feira à noite uma exposição dedicada ao arquitecto norte-americano Frank Lloyd Wright. Muitos dizem que iniciou a modernidade na arquitectura, quando em 1900 revolucionou os interiores, propondo a casa como uma experiência continua de espaços.

Mesmo que Frank Lloyd Wright (1867-1959) não tenha sido o maior arquitecto do mundo - como ele gostava de dizer que era - foi-o na América. Não apenas no seu período de vida, durante o qual praticamente não conheceu rivais entre os seus conterrâneos, mas para a história que lhe conferiu o destaque que merecia. Wright viveu entre 1867 e 1959, apresentado a cada década um novo fôlego criativo que haveria de o colocar entre os mestres da arquitectura do século XX. E tudo começou com uma primeira casa em 1888, prosseguindo numa prodigiosa produção, até à última obra-prima, o Museu Guggenheim de Nova Iorque. Era um homem arrogante e obstinado, vaidoso com o estatuto de mito que a América lhe criou. Trabalhou em Chicago com Louis Sullivan, talvez o único mestre a quem reconheceu verdadeiro valor. Depois integrou a chamada "Prairie School" que agregou alguns dos mais prometedores arquitectos americanos da sua geração até 1909. A intenção do arquitecto era resgatar colectivamente uma tradição americana de arquitectura que contrariasse a influência europeia. No entanto, a sua forte personalidade acabaria por eclipsar qualquer protagonismo alheio. Finalmente, impôs a todos os seus discípulos uma veneração incondicional, principalmente aqueles que o seguiram em Taliesin, um centro de estudos de arquitectura criado por si - Wright nunca ensinou na universidade, pois desprezava o ensino académico que então vigorava. O seu próprio filho haveria de escrever um livro intitulado "O Meu Pai que Está na Terra". Em vida, como na morte, Wright foi uma espécie de deus. Os seus melhores seguidores foram aqueles que tiveram a sorte de escapar à sua presença autoritária e caprichosa. Apesar do auto-isolamento a que se votou, foi dos arquitectos mais "copiados" e estudados do século em que viveu. A publicação exaustiva dos seus projectos acabaria por gerar imitadores nos mais diversos territórios, transformando os postulados da arquitectura de Wright numa espécie de estilo arquitectónico. Disso se apercebeu ainda em 1932: "Todos somos educados como ecléticos. Por isso uma imitação geral ou parcial é inevitável. As pessoas tomarão as minhas ideias e os meu princípios. Por um lado, irão explorá-los; por outro, extrairão deles uma nova formulação académica."O contributo que haveria de dar à arquitectura europeia, cuja modernidade se iniciou depois da maturidade profissional de Wright, seria comentado até por Mies van der Rohe, que posteriormente o arquitecto veria como uma ameaça à sua hegemonia no mundo americano. O arquitecto alemão afirmaria então em 1946, já no seu exílio na América, referindo-se ao momento de descoberta da obra de Wright pela vanguarda europeia: "Quanto mais submergíamos no estudo das suas criações, mais crescia a nossa admiração pelo seu incomparável talento, pela audácia das suas concepções e pela independência do seu pensamento e acção. O impulso dinâmico que imanou do seu exemplo vigorou em toda uma geração. A sua influência foi profundamente sentida, mesmo nos casos em que não era visível."O primeiro arquitecto europeu a ser confrontado com a obra de Wright foi Adolf Loos, que viajou até ao continente americano em 1893. As casas mais revolucionárias de Loos, edificadas depois de 1910 em Viena, na sofisticada capital austríaca de linhagem neo-clássica, fazem tributo a essa "descoberta". É precisamente a partir dessa década que a referência a Wright se torna obrigatória entre os europeus e a América do Norte transforma-se num ponto de peregrinação para os arquitectos "modernos". A sua influência acompanhou a própria evolução da cultura arquitectónica no velho continente, desde as diversas tendências da arquitectura Arte Nova que vingaram durante a transição do século, ao Movimento Moderno iniciado nos anos 20, passando por grupos relativamente autónomos como o holandês De Stijl.Tudo porque Wright transformou os programas funcionais dos seus edifícios, criando estruturas internas menos compartimentadas e mais abertas, geridas a partir de planos e não de paredes divisórias. O ponto dominante da sua configuração espacial residia na ideia de continuidade, conseguida através de encadeamentos de pavimentos dispostos a diferentes alturas e sem obstáculos materiais ou visuais. As soluções volumétricas que daí resultavam eram também mais plásticas e dinâmicas, cumprindo as teorias funcionalistas dos pioneiros da arquitectura moderna europeia que apelavam a uma nova arquitectura, livre do espartilho dos estilos históricos. Foi por isso que a sua arquitectura encontrou eco nesses primeiros vanguardistas. A forma que os edifícios de Wright tomavam levou-os a ser integrados na corrente da arquitectura orgânica, aparentemente mais adequada à paisagem, às necessidades do programa e ao cliente e portanto foram vistos como anti-historicistas. Afinal o que significava para Wright a ideia dessa arquitectura? "Preocupei-me em devolver ao lugar o seu significado, fazendo dele uma parte importante do edifício." O seu desejo, ou o destino que impôs a si próprio, era o de fundar uma arquitectura genuinamente americana e como tal a paisagem americana deveria espelhar-se na sua obra. Mais importante que a paisagem geográfica, contudo, era o significado do estilo de vida americano e o homem, "a única medida" em que afirmou acreditar."Declaro que chegou para a arquitectura a hora de reconhecer a sua natureza, de compreender que ela deriva da vida e que tem por objecto a vida como hoje a vivemos; de ser, portanto, algo intensamente humano. Se vivemos com individualidade e com beleza, a arquitectura deve ser uma necessária interpretação da vida." Posições como esta, que confirmavam o carácter não estritamente utilitário das suas criações arquitectónicas, acabariam por isolá-lo das vanguardas europeias e principalmente da primeira fase do Movimento Moderno, que privilegiou a vocação racionalista e colectiva da arquitectura. Apesar do reconhecimento da sua importância para a produção europeia, Wright nunca se vinculou a um movimento ou a uma tendência, preferindo reinar sozinho na imensa América. E quando Henry Hitchcock organizou em Nova Iorque, em 1932, a famosa exposição "International Style", onde se reuniam as obras modernas até então construídas, Wright sentiu-se preterido no seu país natal, o que o levou a proclamar: "Le Corbusier, Gropius e companhia estão hoje onde eu estava em 1900." Deste modo assumia simultaneamente a sua posição de precursor e a sua autonomia criativa.É claro que a América do Norte abrigou outros arquitectos notáveis, autóctones, como o mestre Sullivan, ou imigrados de outros continentes, caso já citado de Mies van der Rohe ou de Louis Kahn. Todavia a genialidade de Wright fez dele o arquitecto americano por excelência, provavelmente aquele que melhor traçou uma imagem poética para a arquitectura americana apoiada nos valores que ainda hoje se reconhecem como os que caracterizam parte dessa sociedade: um forte individualismo empreendedor associado a um espírito conservador. A arquitectura de Wright personificava exactamente isso. Destinava-se a perpetuar o peso da família tradicional americana enquanto ajudava a estruturar uma sociedade democrática baseada nas iniciativas privadas. Cumpria com exactidão a lição de Sullivan: "O arquitecto americano (...) deve absorver no seu coração e na sua mente o seu próprio país e o seu povo". Exemplo disso é o modelo de cidade ideal que Wright desenvolveu entre 1925 e 1935 - Broadacre City - afinal uma cidade descentralizada onde desaparecia a distinção entre mundo rural e urbano. O seu traçado disperso tinha como célula fundamental a casa unifamiliar, ou seja, a família nuclear, onde cada cidadão teria direito a receber a porção de território que fosse capaz de explorar. Não preconizava com esta atitude um retorno a uma economia de subsistência, muito pelo contrário. O desenvolvimento do automóvel, peça-chave no pensamento "urbanístico" wrightiano, permitia resolver a necessidade de mobilidade inventada no século XX através da construção de extensas vias rápidas. Broadacre City simbolizava, na verdade, a visão que Wright cultivava da Idade da Máquina, aquela que o final de oitocentos inaugurou e esta era a sua resposta ao caos urbano que imperava na maioria das cidades do mundo que então se industrializava. A sua concepção partia de uma questão: como poderia a liberdade e a democracia sobreviver na sociedade industrial? Para Wright a vida urbana confinada a perímetros com altas densidades construtivas, como certos arquitectos europeus seus contemporâneos defendiam, não servia a América por ser um veículo de decadência moral e espiritual. Esta herança deixada por Wright, influenciada pela tradição jeffersoniana que moldou o pensamento americano, é actualmente perceptível em muitos dos subúrbios residenciais que configuram as zonas periféricas das grandes cidades norte-americanas.O modelo familiar deveu-o Wright a sua mãe, personalidade preponderante na sua educação uma vez que a figura paterna se tornaria ausente depois da separação dos pais por volta de 1885. Na efabulação em que transformou a sua própria autobiografia, Wright relatou que o seu destino como arquitecto fora traçado por sua mãe, antes ainda do seu nascimento. Fora ela quem decorara o seu quarto de criança com reproduções de catedrais inglesas de modo a reforçar no futuro esta vocação profissional. O percurso pessoal de Wright, no entanto, parecia abalar a imagem da família tradicional. Filho de pais divorciados, Wright era dado a paixões impetuosas, tendo desfeito vários casamentos. O seu espírito conservador assentava numa ideia muito própria de radicalismo não sujeito às convenções sociais. Esse mesmo empenhamento radical conduziria a sua carreira profissional, obrigando-o a recomeçar várias vezes após períodos praticamente sem encomendas. Quando menos se esperava, Wright renascia e surpreendia. Foi assim com a celebrada Casa da Cascata ou no final da sua longa vida com o museu Guggenheim. Não criou um léxico linguístico, como aconteceu como os principais praticantes da arquitectura moderna, mas definiu um procedimento que o historiador italiano Bruno Zevi tentou inventariar: simplicidade; o edifício como matéria orgânica; cores que se harmonizam com as formas naturais; fidelidade ao material; tantos estilos quantas pessoas; a casa dotada de carácter. Sobre ele escreveu ainda Mies: "A obra deste grande mestre apresentava um mundo arquitectónico de insuspeitada força, claridade de linguagem e desconcertante riqueza de formas... Aqui florescia uma genuína arquitectura orgânica."

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