A arquitectura vista como uma segunda pele

Faz sentido ver no corpo o eixo da arquitectura contemporânea? Foi para discutir questões como esta, mas sobretudo para assistir a uma trapalhona, mas divertidíssima, conferência do arquitecto Didier Fiuza Faustino que o auditório da Casa das Artes, no Porto, quase transbordou anteontem à noite, no lançamento do evento "Arquitectura - Prótese do Corpo", uma iniciativa da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) e pela Associação Cultural Hangar que hoje chega ao fim. Foi com uma hora de atraso que Gonçalo Furtado, um dos responsáveis pelo programa, deu o mote para as intervenções da noite - o fim da tarde serviu para a exibição, no auditório da FAUP, de "Estranhos Prazeres", de Kathryn Bigelow, em sessão comentada pelo artista Paulo Mendes -, sublinhando "o enorme protagonismo assumido pelo corpo nas ciências sociais e nas artes" e a pertinência de pensar a arquitectura a partir do corpo.Foi, pois, com os olhos postos na definição de arquitectura como "hipercorpo" - segunda pele, prótese, extensão - que decorreram as intervenções da estreia do evento, subordinadas ao tema genérico "o corpo sociopolítico". A escolha dos convidados da noite - do conferencista Didier Fiuza Faustino, um luso-descendente radicado em Paris que trabalha a partir do "atelier" Mes/Architectures, ao amplo e multisciplinar painel encarregado de animar a mesa-redonda, que contou com o "designer" Eduardo Côrte-Real, o artista plástico António Olaio, o coreógrafo Miguel Pereira e o editor João Urbano - reflectiu essa mesma preocupação de resgatar a dimensão ética "um pouco perdida" da arquitectura e de lhe devolver uma missão mais ou menos militante de intervenção social, depreciado que está o seu actual papel político. Ao arquitecto "parisiense" coube ainda introduzir no auditório a dimensão "non-sense" que faltava: desde o primeiro minuto da conferência, iluminado pela projecção no ecrã gigante de um jogo da macaca, metáfora da distância entre a arquitectura real e a arquitectura ideal (na foto - trabalho que o autor produziu para a série ArtePÚBLICO), ao último segundo, em que Didier Fiuza Faustino exibiu "2002 - A Swiss Odyssey", um irónico jogo de computador que caricaturiza um projecto de teatro flutuante em curso na Suíça, o tom foi de ligeireza. Passando em revista alguns dos seus projectos mais emblemáticos, das cabanas para crianças de rua de Leiria, à intervenção premiada na Bienal de Veneza - um contentor destinado a proteger corpos em trânsito migratório, resultado directo da sua pessoalíssima "hiperconsciência de ser estrangeiro" -, passando pela casa-puzzle para extraterrestres destinada a Roswell, Texas, pelo "testículo virtual" com que testou a noção de espaço, pela instalação "Users et Abusers", encomendada pelo Museu de Arte Moderna de Paris, e por "Stairway to Heaven", uma experiência de arte pública em Castelo Branco, Didier Fiuza Faustino cruzou-se aqui e ali com o tema em debate e recusou ver na arquitectura uma mera "prótese" do corpo humano, ou social. "A arquitectura é um serviço, uma espécie de segurança social. Mas prótese não: é um acto que vale por si mesmo. E prótese do corpo muito menos: a arquitectura é, pelo contrário, um espaço onde o corpo tem todo o poder", frisou.Entretanto, o público dispersou e muito menos gente assistiu à mesa-redonda que se queria capaz de pensar a "arquitectura como ferramenta de humanização e de artificialização da natureza". Eduardo Côrte-Real foi o primeiro a ressituar a arquitectura contemporânea, lembrando que os princípios fundadores da disciplina, beleza e harmonia continuam a geri-la, mas não hesitando um milímetro na tese de que o momento actual é o "fim de um ciclo" em que a própria palavra arquitecto pode estar à beira de "esgotar a sua validade". António Olaio, o orador que se lhe seguiu, recuou ao tema-título da conferência para questionar a insistência na centralidade do corpo. Num autodenominado "texto-remix", João Urbano prolongou o debate, sublinhando, à luz de Foucault, "a produção de um corpo biopolítico como acto fundador da modernidade".

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