Que islão poderá salvar a Indonésia?

Quantas faces tem o islão? Na Indonésia, pelo menos duas. Os que querem um estado secular, ainda que acreditando que os valores do islamismo poderão resgatar o arquipélago do caos, e os que, sob a mesma convicção, lutam por um estado religioso, onde serão aplicadas as regras da "sharia" (lei islâmica). O debate no maior país muçulmano de mundo acentuou-se depois dos ataques de 11 de Setembro.Apesar de um número enorme de fiéis islamistas entre os seus 220 milhões de habitantes, a Indonésia tem conseguido manter um regime secular. É esse um dos pilares da "Pancasila", os princípios que acompanharam o nascimento da nação e que ainda hoje são respeitados. Mas no meio do caos económico, social e muitas vezes político em que o arquipélago mergulhou, há uma corrente cada vez mais forte que defende a religião como factor de união e, principalmente, de orientação.É este o caso de Nursanita Nasution, política muçulmana e professora de Economia de 39 anos. Nasution acredita que a melhor forma de acabar com a violência sectária que se vive em várias regiões da Indonésia é criando um estado islâmico. Esta mãe de sete filhos fez com que milhares de mulheres saíssem à rua para acções contra o jogo e a pornografia, relatava esta semana o "Wall Street Journal".Do outro lado está Syafii Maarif, líder da segunda maior organização muçulmana indonésia, formado no Ocidente. Não deseja que a política e a religião se unam, mas que o país viva sob os princípios religiosos, de paz e amor, do Corão. E espera que a maioria dos seus compatriotas continue a seguir um islamismo moderado.A avaliar pelas manifestações que se seguiram ao início dos bombardeamentos americanos contra o Afeganistão (como retaliação contra o ataque a Nova Iorque e Washignton), pode ser que Maarif veja o seu desejo cumprido. Milhares de pessoas foram chamadas à rua pelos grupos mais radicais, mas a maioria acabou por ficar em casa e os protestos, apesar de quase quotidianos, foram menores do que alguns temiam.Durante o regime de Suharto "muitos muçulmanos indonésios sentiram que foram privados do seu direito de governar a nação", escreve o norte-americano Adam Schwarz, no seu livro "A Nation in Waiting" (1999). Não alimentar o islamismo - o que Suharto fez com a ajuda militar - era uma forma de cortar a voz aos movimentos separatistas. "Mas nos anos 80, um revivalismo da consciênca islâmica floresceu na Indonésia, especialmente entre os jovens. Cada vez mais, o islão começou a ser visto como uma alternativa para a estrutura política altamente circunscrita". As tentativas da Nova Ordem (os 32 anos de ditadura) de despolitizar a Indonésia levou muitos a olhar para o islão como uma segunda arena de acção. Isso aconteceu sobretudo nos campus universitários do arquipélago. Nursanita Nasution estava na Universidade da Indonésia, em Jacarta, quando foi arrastada para a política. Relacionou-se então com uma série de estudantes e intelectuais que queriam mudar o país. A importância dada aos grupos islâmicos começou a crescer ainda no tempo de Suharto, numa tentativa de garantir algum apoio que começava a vacilar pelo lado dos militares e de minimizar as críticas que os líderes muçulmanos lhe iam dirigindo cada vez mais assiduamente. Esta nova abordagem recebeu, no entanto, a contestação de líderes religiosos, como o ex-Presidente Abdurraham Wahid, na altura chefe da maior organização muçulmana do mundo, o Nahdlatul Ulama (NU), com 30 milhões de membros. Wahid defendia que as minorias, nomeadamente católica e chinesa, é que deviam ser protegidas - não só por serem vitais para a economia do país, como para evitar mais conflitos étnicos. "O islão deve ser uma ética social e não uma força política", dizia. A queda de Suharto, obrigado a deixar o poder em Maio de 1998, abriu definitivamente o caminho para que as tendências muçulmanas ganhassem voz. Entre os inúmeros grupos partidários criados então, nasceu o Partai Keadilan, o Partido da Justiça (PK), do qual Nursanita faz parte."Com as pressões para o pluralismo, é inevitável que os muçulmanos recebam mais poder político. A questão é: quanto mais, e que muçulmanos?", interroga Schwarz. "Na Indonésia, existem actualmente muitas faces do islão, mas estamos ainda a procurar a modernidade", explica Syafii Maarif ao diário norte-americano. "Precisamos de oferecer uma perspectiva alternativa para o futuro".Para o PK, menos moderado, o futuro passa pela democracia. Mas os seus dirigentes culpam a corrupção e a decadência moral actuais pelo colapso da economia daquele que foi, durante décadas, um dos exemplos de crescimento económico na região. Muitos dos membros do PK foram formados no estrangeiro, em países ocidentais, mas a maior parte tem reservas quanto a várias instituições financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). "A nossa conclusão sobre a crise é que existe uma falta de moralidade e responsabilidade na Indonésia", diz o seu fundador, Nur Mahmudi Isamail. "As respostas estão nos ensinamentos religiosos".Nursanita Nasution quer que a mulher desempenhe um papel mais importante na reconstrução do seu país. Foi por isso que recrutou um exército de saias para policiar a moralidade. Em Novembro passado, enviou-o a dez cidades diferentes. Só em Bandung (em Java Ocidental), mil activistas, com lenços na cabeça, invadiram o escritório do presidente da Câmara, a assembleia local e um centro comercial numa campanha de destruição de vídeos com sexo explícito. "Salvem a nossa geração da pornografia", diziam."O islão já não é visto como o ópio dos não-escolarizados ou dos economicamente desfavorecidos. Professionais e membros da classe média encaram-no cada vez mais como uma religião que lhes pode satisfazer as suas necessidades espirituais no contexto da sociedade contemporânea", escreve ainda o académico americano.Há também quem o use como uma arma. O radical Laskar Jihad é responsável pela morte de milhares de pessoas nos conflitos entre cristãos e muçulmanos, que se travam sobretudo no Centro e Leste indonésio desde a queda de Suharto. O seu líder, Ja'far Umar Thalib, de 40 anos e filho de emigrantes do Iémen, recebeu instrução nas madrassas de Peshawar, no Paquistão, e envolveu-se na luta contra a invasão soviética, no Afeganistão. Diz-se que tem ligações à Al-Qaeda, de Osama bin Laden.O historiador Maarif recorre à religião para obter outro tipo de respostas: uma forma de promover a democracia e a igualdade. O autoritarismo, diz ele, semeia a ignorância e suprime o pensamento. Aos 45 anos deixou a Indonésia para estudar em Chicago. Foi lá que tomou contacto com as várias abordagens do islamismo. E começou a defender que a "cultura do islão" é preferível a um estado islâmico, um princípio proclamado pela organização muçulmana que dirige desde 1998, o Muhammadiyah (a segunda mais importante, a seguir ao NU). "Para entendermos verdadeiramente o islão, temos de perceber que ele tem muitas raízes diferentes", continua Maarif. "Então concluimos que ele defende a paz".Maarif tem milhões de seguidores, aparentemente dispostos a percorrer o seu caminho. Mas o caos na lei e na ordem, o aumento do desemprego e a crise económica estão a dar terreno ao radicalismo. Pode ser que, como diz Syafii Maarif, "enquanto irmãos, concordamos em discordar". O historiador acredita que a Indonésia possa vir a ser "um modelo para o mundo islâmico". Mas muitos temem que as tendências de Nursanita Nasution e de Ja'far Umar Thalib venham a determinar o futuro da Indonésia.

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