Jim O' Rourke de peluche

Em vez de um disco, dois. Entre a doce fragilidade pop de um e a repetição mecânica de outro é tempo de desvendar um pouco do mundo do homem dos mil ofícios, Jim O' Rourke.

É um homem de talento. E talento, aqui, significa mais do que ser-se dotado de capacidades superiores à norma. Como se sabe, ter talento e não ser capaz de o utilizar de nada serve. Jim O'Rourke, pelo contrário, consegue concretizar essas qualidades. No seu caso, a música. Seja como compositor, editor, engenheiro de som, intérprete, produtor ou remisturador, sempre soube a justa medida das suas possibilidades artísticas, explorando-as de modo a obter resultados satisfatórios. O mais recente álbum de Jim O'Rourke é tudo menos o que o seu título indica. De insignificante, "Insignificance" nada tem e poder-se-lhe-ia aplicar o slogan que Fernando Pessoa escreveu para a Coca-Cola: "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Seguindo a linha do anterior "Eureka", "Insignificance" - que foi gravado e posteriormente regravado pois O'Rourke não gostava das orquestrações excessivas e do som demasiado "fabricado" da primeira versão - é um disco de fino recorte pop, cheio de melodias frescas que fazem sonhar com o Verão. E se tal é possível, trata-se de um trabalho ainda mais leve (e não se pode confundir leve com ligeiro) e etéreo do que o álbum anterior. Harmonias vocais trabalhadas como filigrana, que lembram as estruturas elaboradas e joviais que foram apanágio dos Beach Boys, e uns leves toques tropicais, dão a "Insignificance" um colorido e uma vitalidade admiráveis. Mas há aqui mais do que meras cançonetas pop. O último tema, "Life Goes On", segue a linha geral do álbum, mas a sua fresca toada pop tranforma-se num ruído persistente e contínuo. Como que a lembrar que as raízes de O'Rourke residem no mundo da esperimentação e da pesquisa sonora. E é também essa vertente da sua actividade criativa que surge em outro disco, "I'm Happy and I' m Singing and a 1, 2, 3, 4". Engloba três peças instrumentais gravadas entre 1997 e 1999 nos EUA e no Japão que constituem um trio sonoro eleborado à base de construções electrónicas que, dentro de cada tema, se repetem num 'loop' hipnotizante. É claro que aqui ninguém canta, nem das estrias do CD se desprende alguma felicidade radiosa, nem existe nenhum ritmo que se assemelhe ao evocado por "1, 2, 3, 4" , o mote para o bater das baquetas de um baterista de um grupo rock quando inicia um tema. As palavras que nomeiam o disco são um jogo para a imaginação. Para nos obrigar a ver nas frequências e tensões sonoras algo mais orgânico e palpável.Os passos de Jim. Para a maioria das pessoas o nome pouco ou nada significará. Alguns saberão que, desde há um par de anos, faz parte das fileiras dos Sonic Youth. E haverá mesmo uma maioria que já ouviu parte de uma das sua canções num dos recentes anúncios da TMN. Isso mesmo, o início de "Prelude To 110 or 220/Women Of The World", o tema de abertura do anterior álbum a solo, "Eureka", foi a música escolhida para suporte musical da campanha publicitária de uma marca de telemóveis. Mas muito antes de chegar a um tão vasto domínio público já Jim O'Rourke era um nome respeitado nos meios musicais menos pop/rock. Inumerar a totalidade dos discos, colaborações e demais movimentações seria fastidioso de tal modo é elevado o número de projectos em que se envolve. À laia de resumo, diga-se que nos caminhos desbravados por Jim O' Rourke, cuja actividade (pelo menos a documentada) começou no final dos anos 80 com os Elvis Messiahs , cruzam-se os nomes de Brise-Grace, Bobby Conn, Die Haut, Faust, Jesus Lizard, John Fahey, K.K. Null, Labradford, Merzbow, Rafael Toral, Red Krayola, Tony Conrad ou Tortoise. A par dos nomes listados (e dos que ficaram por nomear), existem ainda os de Fenno'berg, Gastr del Sol, Illusion of Safety, Sonic Youth, Smog, Stereolab. Para se conseguir um fio condutor, o melhor será tentar resumir alguns dos passos dados por Jim. Ainda miúdo, este filho de emigrantes irlandeses que tem uma enorme adoração por coelhos e desenhos infantis, já ouvia David Bailey, Michael Nyman ou Steve Reich. Mas o rapaz criado em Chicago, que se entretinha a manipular e a manusear guitarras preparadas, também gostava de guitarras "a abrir". E não é difícil imaginar o jovem Jim a bater o pé ao som dos pesados riffs de guitarra dos AC/DC. O nome dos AC/DC não é apenas um modo de exemplificar uma sonoridade hard'n'heavy, mas antes o grupo ao qual os Brise-Glace prestam homenagem no duplo single-tributo, "Sides 1-4 (AC/DC Tribute)", e no qual também aparecem os Shellac, Big'n e U.S. Maple. O trio que trabalha sob o nome Fenno'Berg (Christian Fennesz, O'Rourke e Peter Rehberg [Pita]), tem em "The Magic Sound Of Fenno'berg" um disco onde impera a manipulação sonora, de cariz sónico. Assente em estruturas abstractas conseguidas a partir de uma panóplia de aparelhos electrónicos, o trabalho vem na linha do que O'Rourke traça em "I'm Happy and I'm Singing and a 1, 2, 3, 4". Os Gastr del Sol nasceram da junção entre um licenciado da Universidade de Chicago, David Grubbs, e O'Rourke. A paixão do duo pelo cruzamento entre várias tipologias e o seu gosto comum pela esquisitice, levou-os a editar três álbuns e um EP nos quais se pode encontrar o espírito dos Red Krayola, uma das bandas mais admiradas pelo par e que O'Rourke chegou também a integrar. Quanto aos Illusion Of Safety, são o projecto que Dan Burke vem mantendo desde 1983, mas cujo primeiro CD apenas viu a luz do dia em 1991 (até aí apenas tinham sido editadas cassetes) e que, aqui e ali, é complementado por outros músicos, um deles O'Rourke. Umas das mais divertidas características dos Illusion Of Safety é a escassez de informação disponível nas edições do grupo. Como se tal não fosse suficiente para manter uma certa aura misteriosa, Burke inventa boa parte dos dados escritos que acompanham os discos. O seu trabalho oscila entre atmosferas ambientais, colagens sonoras, abordagens electro-acústicas e sonoridades electrónicas. Amigo dos Sonic Youth, O'Rourke e o quarteto nova-iorquino apareceram juntos em disco no EP "Invito Al Cielo", em 1998. O segundo encontro deu-se no duplo álbum "Goodbye 20th Century", no qual os Sonic Youth e alguns convidados, incluindo Jim, interpretam peças de autores do século XX, como Cornelius Cardew, James Tenney, John Cage ou Pauline Oliveros. O álbum editado em 2000 pelo grupo, "NYC Ghosts and Flowers", conta com O'Rourke como baixista em vários temas, sendo também o produtor, assistente de gravação e de mistura. Jim também entra na banda sonora de "Things Behind The Sun", e tornou-se membro de pleno direito dos Sonic Youth tendo acompanhado a banda em diversos espectáculos. Mas o nome de O'Rourke é particularmente conhecido pelos seus trabalhos de produção. A lista, tal como em tudo o que ele se envolve, é longa. Entre nomes obscuros, Butch Morris, Jeff Kowalkowski ou Qurulli, artistas de referência como John Fahey e Tony Conrad e grupos pop-rock como Smog, Stereolab (de quem produziu os últimos álbuns, "Cobra and Phases Group Play Voltage in the Milky Night" e "Sound-Dust"), Sonic Youth, Superchunk, vê o seu nome aparecer em mais de 40 discos. A estas e a outras actividades junta-se a de editor. É responsável pela criação de três editoras, todas elas vocacionadas para a edição, por vezes exclusiva, de reedições. A defunta Dexter's Cigar relançou, em 1998, "Wave Field", álbum de Rafel Toral editado anos antes pela Moneyland Records. Curiosamente,"Wave Field" foi relançado na mesma altura em que Toral via algumas das suas primeiras gravações, sob o nome "Chasing Sonic Booms", serem editadas pela Ecstatic Peace, pertença de Thurston Moore. Na Moikai sairá também a reedição do primeiro disco de Toral, "Sound Mind Sound Body", e ainda a de "Plux Quba Música Para Setenta Serpentes", de Nuno Canavarro. A terceira editora de Jim, a Distemper, apenas exibe uma edição. A reedição de um dos inúmeros discos dos Merzbow, a unidade de destruição sonora que o japonês Masami Akita criou em 1985.

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