La Fontaine em Lisboa

Não é todos os dias que posso louvar algo que se passa no meu país. Por uma vez, este diário respira felicidade. Vi uma obra restaurada, o Mosteiro de S. Vicente de Fora, que me encheu as medidas. Desde que, há muitos anos, deixei de acompanhar o meu pai à Feira da Ladra, raramente me passeio por aquela zona da cidade, sendo possível que se tivessem passado meses, anos, sem que eu tivesse reparado na modificação. Sucede que, há alguns meses, por altura de uma reunião entre o cardeal-patriarca e os jornalistas que haviam escrito sobre uma nota episcopal polémica, me desloquei até ao Campo de Santa Clara. Foi então que notei a beleza do actual Patriarcado, instalado numa das alas do mosteiro. Prometi voltar.A rotina tomava entretanto conta da minha vida. Até que vi, nas livrarias, um livro intitulado "As Fábulas de La Fontaine do Mosteiro de São Vicente de Fora". Era o pretexto de que carecia. Dois dias antes do Natal, depois de lhes ter lido as histórias mais simples, peguei nas minhas netas e partimos as três, enfrentando o gélido vento, a caminho de Alfama. Como frequentemente sucede com monumentos desta dimensão, o mosteiro de S. Vicente de Fora - assim designado por ter sido construído fora das velhas muralhas godas - foi obra de várias gerações. Iniciado após a tomada de Lisboa aos mouros, foi reconstruído - ou, melhor dizendo, construído - durante o reinado de Filipe II, sob a competente traça de Felipe Terzi, o arquitecto que nos legou o claustro principal do Convento de Cristo e o aqueduto de Pegões Altos.A parte conventual, no estilo despojado da arquitectura portuguesa de seiscentos, mantém uma série de claustros, decorados a azulejos, bem como dependências interessantes, de que a mais sumptuosa é a sacristia. No século XVII, as arcadas do primeiro piso foram fechadas com paredes, tendo sido revestidas, interiormente, com painéis de azulejo representando as fábulas de La Fontaine. Recentemente, ao decidir-se abrir as arcadas dos claustros, foram aqueles retirados, e após restauro colocados no piso superior do convento. Inspirados nas ilustrações que, em 1755, Jean Baptiste Oudry fizera para uma reedição da obra de La Fontaine, são espectaculares.Atravessei, com as miúdas a tremer de frio, seis claustros e uma escadaria, de cujo tecto pendia um enorme pássaro. Quando chegámos ao andar superior, verifiquei, com surpresa, que não havia ninguém na exposição, o que teve a vantagem de podermos falar alto sobre o que íamos vendo: "Ó avó onde está o rato que vai libertar o gato?" A meio, contudo, as miúdas fartaram-se, pretendendo, como me disseram, ir verificar como haviam preso o passarão de cartolina ao tecto. Eu resisti, pois queria ver tudo. Com a notável intuição de que estes seres são dotados, compreenderam ter chegado o momento de fazer exigências. Sim, que acederiam ao pedido de ver todos os painéis, desde que eu as levasse a um McDonald's (reivindicação da mais velha) e que lhes comprasse um fato de indiana para a Barbie (idem da mais nova). Foi assim, arrastando duas crianças, a fingir que estavam exaustas, que vi os 38 painéis de La Fontaine.Das 240 fábulas que o poeta francês nos deixou, a obra editada pela Gótica inclui as 38 retratadas nos azulejos. A editora fez bem em publicá-las em edição bilingue, pois, além de traduções razoáveis (feitas por poetas portugueses conhecidos), o leitor pode ler o texto original. Dado La Fontaine ser um dos maiores poetas franceses do século XVII, vale a pena. Tão puro e clássico é o seu estilo que alguns estudiosos, como Charles Rosen, têm mesmo defendido serem as fábulas intraduzíveis.O livro inclui um prefácio de A. Coimbra Martins, no qual o autor se refere a recordações da infância, a elementos históricos relativos ao monumento e a referências à poesia de La Fontaine. No final, salienta ainda a contribuição portuguesa para as fábulas, ou seja, a sua transposição para azulejaria. Mais do que os azulejos, contudo, interessaram-me os poemas. As fábulas misturam, com um brilho invulgar, a comédia e a eloquência, a paródia e a sátira, o lirismo e a ironia. Ao tempo em que foram escritas reinava em França Luís XIV, um monarca pouco amigo de oposições, mas La Fontaine conseguiu a proeza de transformar as fábulas numa visão crítica da sociedade sem incorrer na fúria que os "Contes" tinham provocado. O livro, destinado a um público adulto, pode ser apreciado por crianças, desde que a leitura seja acompanhado de um mínimo de explicações. Como já havia verificado, quando lera às netas a História do Barba Azul, de Charles Pérrault, um conto igualmente datado do século XVII, nada agrada mais às crianças do que uma boa dose de crueldade. E esta encontra-se espalhada, em abundância, nas histórias de La Fontaine. Aliás, o que faz com que elas apreciem as fábulas é exactamente uma característica - a crueza - que levara J.J. Rousseau a considerar serem perigosas se consumidas por indivíduos de tenra idade.La Fontaine era um pensador demasiado lúcido para se entregar a moralizações fáceis. Mas as regras do género declaravam que cada fábula tinha de ostentar uma lição. E elas lá figuram, no final: "É bem tolo, o outro diz, quem crê na aliança/ Que da necessidade foi nascida" ("O rato e o gato") ou "Para sócio não busques o mais forte,/ Que te arriscas de certo à mesma sorte" ("A panela de ferro e a panela de barro"). Muitas das histórias são, no entanto, claramente amorais. Nesta quadra natalícia, em que a depressão espreita a cada esquina, aqui fica uma recomendação, apresentada por alguém que, ainda há um mês, lamentava a falta de obras de arte em Portugal. Dê um passeio até Alfama, onde irá encontrar um monumento espectacularmente restaurado. E, já agora, compre o livro com as fábulas de La Fontaine. Não se arrependerá de nenhum dos actos.

Sugerir correcção