Torne-se perito

Alqueva: data incerta para fechar comportas

A chuva que começou a cair nas últimas semanas viria mesmo a calhar. O dia 31 de Dezembro de 2001 era anunciado como a data limite para o encerramento das comportas da barragem do Alqueva, e a água vinda do céu é a matéria-prima para o enchimento da futura albufeira, que há décadas povoa o imaginário de muitos como a solução para os problemas do Alentejo.A data inicial, no entanto, foi primeiro adiada para meados de Janeiro e hoje a Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA) já não é capaz de dizer quando, concretamente, é que se fecharão as comportas. "Quando estiverem reunidas as condições mínimas para garantir a defesa de pessoas e de bens", afirma o presidente da EDIA, Adérito Serrão.O início do enchimento do Alqueva está condicionado por uma série de tarefas ainda por concluir. A mais atrasada é a construção de uma nova ponte na estrada que liga Reguengos de Monsaraz a Mourão. A ponte velha ficará sob a água logo que o nível da albufeira atinja a quota 125 metros - ou seja, 27 metros abaixo da altura máxima do Alqueva. Mas a ponte nova, que ainda tem vários vãos por fechar entre os pilares, só estará pronta no final de Fevereiro, "se as condições climatéricas o permitirem", segundo informação do Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR).Na melhor das hipóteses, portanto, as comportas serão encerradas em Março, a não ser que se deixe a albufeira encher apenas um bocado, abaixo da cota 139 que se esperava atingir neste Inverno. "Não gostaríamos de perder nenhum mês para além do 31 de Dezembro", afirma Adérito Serrão. "Mas não vamos acelerar", completa.Adiar o início da subida das águas pode, involuntariamente, ter um efeito positivo. Seria uma espécie de balão de oxigénio para uma enorme área da bacia do Guadiana que depois ficará debaixo d'água. Ou seja, um último suspiro antes da concretização de uma das maiores destruições ambientais associada a um único projecto de que se tem memória no país. Quase 400 pessoas terão de mudar de casa, mais de um milhão de árvores estão a ser cortadas, 300 sítios arqueológicos e "habitats" intocados ficarão submersos, 236 espécies de animais serão deslocadas, plantas únicas serão replantadas em outras áreas, peixes raros correm o risco de se extinguir, e a água poluída do Guadiana será transferida para a bacia do Sado.O atraso no calendário pode desafogar a urgência sobre várias frentes de trabalho, que estão a correr contra o relógio. Por causa da pressa, a desarborização do leito da albufeira, por exemplo, tem registado alguns atropelos. Este ano, o corte das árvores e do mato só está a ser feito até à cota 139, evitando perturbar uma faixa, até à cota 152, que só será inundada no Inverno de 2003. Mas em alguns pontos, o material cortado foi arrastado e armazenado precisamente nesta faixa, onde as máquinas não deveriam estar a circular.Houve também alterações ao calendário que implicaram - em áreas do rio Degebe e da ribeira de Alcarrache - a intervenção em períodos interditos a qualquer actividade, por razões ecológicas. Para algumas associações ambientalistas, o tempo escasso e as alterações à programação inicial estão a dificultar o trabalho da Comissão de Acompanhamento do Impacto Ambiental do Alqueva (CAIAA). "A coordenação dos trabalhos tem ficado cada vez mais complicada", afirma Rosa Matos, representante das associações nacionais nessa comissão.Nessa e em outras frentes, um pouco mais de tempo antes do enchimento até será bem-vindo. Os arqueólogos continuarão a estudar o património da região pelo menos até ao fim de Janeiro. A própria EDIA tem um pouco mais de margem de manobra para concluir obras sob a sua responsabilidade, como a construção da nova Aldeia da Luz.Perante o atraso actual, cabe perguntar qual é a necessidade de se iniciar já, neste Inverno, o enchimento do Alqueva. À cota 139, a albufeira encaixará menos de 800 milhões de metros cúbicos de água - ou seja, apenas um quarto da sua capacidade total. Por ora, esta água não servirá para a agricultura, uma vez que o único perímetro de rega que está já pronto - o de Figueira de Cavaleiros - ainda não está ligado ao Alqueva e será abastecido pela albufeira de Odivelas, já existente. A central eléctrica da barragem também ainda não está concluída e o Alqueva não começará a produzir electricidade antes de 2003."Durante o ano de 2002, essa água não vai servir para nada", afirma João Joanaz de Melo, também representante dos ambientalistas na CAIAA. Daí que, entre técnicos ligados ao empreendimento do Alqueva, há quem reconheça que, se o encerramento das comportas ocorrer já na Primavera, será apenas um evento político.O primeiro enchimento irá servir, no entanto, para testar o comportamento estrutural da barragem. A água irá subindo em patamares, com paragens para serem feitas medições no paredão. Além disso, o presidente da EDIA afirma que, iniciando-se o mais rapidamente possível o enchimento, ganha-se tempo para completar a albufeira no ano seguinte. Falta, no entanto, um ingrediente fundamental, mas imponderável: chuva. "Uma albufeira como o Alqueva só será cheia num cenário de precipitação elevada", afirma o presidente do Instituto da Água, Mineiro Aires. E ninguém pode prever o humor de São Pedro nos próximos meses. No seu ano mais seco desde 1950, o Guadiana transportou água equivalente a apenas quatro por cento da capacidade do Alqueva. Já no Inverno passado, só as chuvas de Janeiro, Fevereiro e Março teriam enchido um Alqueva e meio.*com Carlos Dias

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