Lisboa nos sons e nos sonhos de Cabo Verde

Dois anos após o CD "Música de Intervenção Cabo-Verdiana", é hoje apresentado "Lisboa nos Cantares Cabo-Verdianos", mais um capítulo no ambicioso projecto de abordar a música de Cabo Verde a partir da sua temática. Alberto Rui Machado, luso-caboverdiano, licenciado em engenharia, está na origem de ambos os discos e na base do projecto. Não só ele: para este CD, hoje materializado num espectáculo único (integrado na homenagem ao escritor cabo-verdiano Manuel Lopes), foi essencial a colaboração da cantora Titina.Nas vésperas do lançamento, Alberto Rui Machado conta como, com a ajuda de Titina, procurou, entre muitos registos e canções, diferentes formas de ver Lisboa a partir de Cabo Verde. "As visões que o cabo-verdiano foi tendo de Lisboa foram variando ao longo dos tempos", diz. "De uma mesma época há visões diferentes de diferentes autores. Foi isso que procurei retratar no disco." No essencial, a base das recolhas foi o arquivo de S. Vicente, onde estão guardadas gravações e discos de todas as épocas. "Tudo o que tinha o mínimo de qualidade para ser aproveitado, foi", diz Rui Machado. E isso fez com que, para o CD, tenham sido recuperadas gravações, antigas ou recentes, de Titina ("Bêjo di sôdade", "Trás d'horizonte"), Bana ("Travessa di pêxera"), Ildo Lobo com os Tubarões ("Forti trabadja", "Alto cutelo"), José Casimiro ("És genti grande" e "Hugo"), Frank Mimita ("Um tita bai pâ Lisboa"), Dany Silva ("Tradiçon"), Valdemiro Ferreira/Vlú ("Rua de Lisboa") e Norberto Sanches ("Três ano na Lisboa").Mas houve também regravações, devido à má qualidade ou excessiva datação dos originais. Neste caso, coube a Titina recriar "Grandeza", de Eddy Moreno; "Mensagem creoula", de Fernando Queijas; e "Agora ê aból", de Frank Cavaquinho. Já a popular Maria Barba, cantada em português e em crioulo, foi entregue a Maria Alice e Luis de Matos para que, pela primeira vez, a canção surgisse gravada na íntegra e no dueto original (na versão de Bana, ele próprio fazia as vozes do Tenente Serra e de Maria Barba). Por fim, "Lisboa, capital di sôdade" é uma canção nova, com letra de Alberto Rui Machado e música do compositor Manuel D'Novas: "Resolvi fazer uma letra que o Manuel d'Novas musicou. Mas acho que, na realidade, a letra não é minha, porque falei com imensa gente, também com a Titina, e fui ouvindo pessoas de todas as camadas sociais dizerem o que pensavam de Lisboa. Não só de Lisboa, mas de Portugal e dos portugueses."Histórias de LisboaE se ele ouviu muita gente, ouvimo-lo agora nós falar dessa Lisboa que conheceu bem cedo: "Vim pela primeira vez com 9 anos, a caminho dos Açores (o meu pai era açoreano), e fiquei encantado com tudo: a cidade, a arquitectura, os espectáculos. Lembro-me de ir ao cinema Monumental, recém-inaugurado, ver 'O Facho e a Flecha'". Voltou várias vezes (estudos, serviço militar), casou e criou raízes. "Mas nunca passei um ano sem ir a Cabo Verde, há sempre essa ligação à terra". Com Titina passa-se o mesmo, visita regularmente Cabo Verde. Mas Lisboa está-lhe gravada no coração desde que a viu pela primeira vez, em 1962: "Foi um encanto muito grande. Vim com o professor Adriano Moreira, visitámos vários pontos do país, mas em Lisboa foi uma coisa inacreditável. Quando vi a Torre de Belém, que eu só estudara nos livros... Só comparo ao que senti em Guimarães, ao ver a estátua de D. Afonso Henriques. São coisas que jamais se esquecem. Sempre que passo nesses sítios é com a admiração de cabo-verdiana que aprendeu a amar Portugal. Ando muito, mas quando chego a Lisboa sinto-me em casa, tranquila, como um filho ao colo da mãe."No disco, está tudo explicado quase sílaba por sílaba: as canções, os motivos, as épocas, a história, a motivação dos autores. E as letras, em crioulo e em português. Há a crença em Lisboa como lugar das grandes decisões, ainda no tempo colonial, ou como lugar de paixão, de convívio ou até como palco de inevitáveis desilusões.Hoje à noite, esta história vai ser contada a várias vozes: Titina, Bana, Tito Paris, Nancy Vieira, Norberto Sanches, Maria Alice, Luís de Matos e José Casimiro. Uma forma de revelar, em disco e ao vivo, o peso que Lisboa teve e ainda tem nos sons e nos sonhos de Cabo Verde.

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