Prémio Maluda de Pintura para Fátima Mendonça

Quando, há dois anos, na altura em que foi a artista distinguida na primeira edição do Prémio Maluda de Pintura, foi perguntado a Ana Vidagal que outros artistas imaginava que podiam ganhar o prémio, esta mencionou, entre alguns, o nome de Fátima Mendonça. Depois de, em 2000, se ter premiado o trabalho de Cristina Valadas, ontem foi, precisamente, Fátima Mendonça a artista anunciada como vencedora da edição de 2001 do galardão, instituído por disposição testamentária da pintora falecida em Fevereiro de 1999.Com um valor pecuniário de perto de 25 mil euros (5 mil contos), o prémio foi, assim, atribuído pela terceira vez a uma mulher, seguindo-se uma vez mais os princípios que regeram as duas anteriores edições: a avaliação -feita este ano por um júri constituído por Fernando Azevedo, José Augusto-França, Luísa Soares Oliveira, Cristina Azevedo Tavares e José João de Brito - de qualquer artista com idade inferior a 40 anos que trabalhe na área da pintura e tenha exposto individualmente em Lisboa entre 1 de Outubro de 2000 e 30 de Setembro de 2001.Discursiva e provocatóriaEscolhida pelo júri pela "finalidade de uma pintura de agilidade discursiva e provocatória, servida por uma expressão pessoal impulsiva, em que se confrontam duas realidades; uma imaginária, outra crítica", Fátima Mendonça, de 37 anos, apresentou no período em questão duas exposições - a primeira, na Galeria Fernando Santos, no Porto; a segunda, e aquela que lhe mereceu o prémio, na Galeria 111, que representa a artista em Lisboa.Sob o título "Tenho medo: lá, lá, lá, lá, lá...", foi em Julho que se inaugurou uma mostra em que, como era na altura sublinhado, se tornou óbvia uma surpreendente evolução no trabalho de pintura e desenho da artista. Por um lado, por uma súbita explicitação da violência que anteriormente apenas se adivinhava nas suas narrativas pictóricas; por outro, pelo abandono, como elemento central, da frágil figura feminina (de igualmente diáfanas roupas de bailarina ou menina de trapézio circense, que insistentemente se identificava com a própria artista, limitando a abrangência de leituras), o que permitiu abraçar um universo mais amplo e abrangente.Vermelhos intensos, sangrantes e opressivas linhas negras (menções apenas evocativas das grades e gaiolas figuradas em trabalhos anteriores) perfilavam imagens de um universo obsessivo em convulsão. Mantinha-se o monocromatismo do fundo, sempre branco, mas, onde antes se tornara previsível o surgimento das inquietantes frases de receitas culinárias e listas de compras (num registo enganosamente exacto) ou vozes de comando (num registo confessional), insurgia-se neste novo discurso a voracidade de uma certa carnificina. "Houve uma alteração no meu vocabulário. Concordo com isso", resume a artista. Vagamente surpreendida com o prémio - até porque, como explica, apesar de "estar mais ou menos atenta", se tivesse sido ela a tratar da sua participação "se calhar, tê-la-ia deixado passar" -, para Fátima Mendonça esta mudança começou a revelar-se já na exposição que apresentou na Galeria Fernando Santos. "Houve uma descentralização de uma figura principal feminina que aparecia em várias histórias" e, nessa exposição, "eu já tinha saído da casa onde essa personagem estava, para o exterior, ao encontro de novas paisagens e de uma certa abstracção."Encetado um caminho porventura mais alegórico, em que os trabalhos "vão no sentido de serem mais simbólicos", o tipo de ligação a um imaginário feminino alicerçado em medos, inseguranças e angústias sofreu também alterações. Como se tivesse explodido, confrontando-se agora com as feridas expostas. E, apesar de um certo carácter confessional continuar a ser assumido, descolou-se já de um sujeito individual."Tive uma vivência muito intensa durante a minha adolescência, e até antes, que se liga a um certo recolhimento, quase clausura, a um universo fechado em que a imaginação pode entrar em processos eventualmente mais angustiantes que a própria realidade", explica a artista. É desse mundo pré-púbere que se arrastou um cenário doméstico povoado de bolos, ovos (ambos progressivamente tornados bolas, brancas ou coloridas), animais vários, sobretudo coelhos (primeiro companheiros de exercícios de funâmbulismo, voos ou danças, agora em carne viva, esfolados). "As motivações, com novas caras e formas, repetem-se, regra geral, ao longo da vida. Repetindo-as, estou, no entanto, a deixar de estar tão centrada no meu eu. Nessa medida, deixei de ter tanta necessidade de apresentar aquela figura feminina e tornei as coisas mais abstractas e gerais. Tanto as formas como os conteúdos derivam desse novo olhar."Quanto ao prémio, explica a artista, deverá ser aplicado de uma de duas maneiras: "Para sair de Portugal, por uns tempos, para Londres, por exemplo, ou num espaço de trabalho - é essencial, onde a pessoa não se sinta constrangida.""É sempre importante receber um prémio destes. Neste momento não tenho uma vida assim tão estabilizada... De uma maneira ou de outra, seria bem empregue. Foi de uma grande generosidade a sua instituição."

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