A invisível noite

Dantes, raramente as mulheres se enforcavam. Era coisa de homens. Diz-se que o enforcamento provoca erecção e em alguns casos ejaculação, sendo voz corrente que as milagrosas mandrágoras eram fruto das gotas de esperma que caíam junto dos patíbulos. As mulheres espatifavam-se de outra maneira: veneno, barbitúricos, voos sobre os abismos, debaixo de comboios, pulsos cortados e até mesmo a tiro. Só no campo (ainda havia campo, isto é, gente no campo) era costume enforcarem-se, mas aí toda a gente se enforcava: homens, mulheres, crianças, velhos.Sarah Kane, citadina, enforcou-se em Londres aos 27 anos, às 4 e 48 de uma madrugada de Fevereiro de l998. "Sou triste", explicou ela, "um fracasso como pessoa, quero matar-me, perdi o interesse pelas pessoas, não sou capaz de tomar decisões, não consigo comer, não consigo dormir, não consigo pensar, sou gorda, não consigo escrever, fazer amor, o meu irmão está a morrer, o meu amante está a morrer, estou a matar os dois. Não quero morrer. Não quero viver..."Traduziu esta situação em quatro peças que são belas em teatro, mas penosas na vida, remetendo-nos, a nós espectadores que também sentimos o nosso corpo cada vez mais estranho e a nossa era cada vez mais errada, para a insuportável circunstância do regresso a um já visto, já conhecido, já tocado, e ao mesmo tempo sempre com a variação do instante e da história que se conta, das palavras que se dizem. A sensação com que ficamos é a de que, sem chegar ao momento limite a que chegou Sarah Kane, já abordámos estas coisas na vida de mil maneiras diferentes, umas vezes de longe, outras de perto, mais à esquerda, mais à direita, em cima, em baixo. Há nisto qualquer coisa que fatiga e fascina.A contradição é estarmos no teatro e não na vida, e nada, em "4. 48 Psicose", nos incita a resolvê-la. Mas é evidente que existe. A contradição entre a distância do teatro e a insuportável proximidade da vida funciona, nesta peça, como uma espécie de alegoria das contradições da própria Sarah Kane, que não só existem nela, mas também, se me é permitido dizê-lo, em todos nós. Na verdade, o inconsciente de cada um de nós é ainda pré-histórico, animista, arcaico, acredita no valor dos símbolos, e a consciência já não tem nada a ver, ou quase nada, com esse inconsciente. Daí um dilaceramento que não diz respeito apenas a Sarah Kane, mas a todos os homens.É este o segundo trabalho do coreógrafo João Fiadeiro para o teatro, após a encenação de "À Espera de Godot". Tem muito de bailado, de dança com as palavras, transformando arriscadamente o texto numa espécie de coreografia. Nesta dança, onde o erotismo (se erotismo há) é inteiramente coberto pela desolação, as palavras, transformadas em movimentos comoventes, atingem o máximo de evocação possível. Fiadeiro contou com dois actores, Gracinda Nave e Miguel Borges, que por vezes conseguem o milagre, entre jogos de luz e escuridão, entre jogos de teatro, de tornar visível a invisível noite.Dito isto, diga-se também que este lirismo, esta aproximação à poesia é um tanto pobre. Não passa. Não sai deste tempo e dos seus estereótipos. É demasiado literário à força de não querer ser retórico e ao mesmo tempo se contorcer em "efeitos", pretendendo respirar como a vida através de invenções de "mise en scène", de jogos de luz..Beckett é muito melhor. Koltès também. Para já não falar de Fassbinder, de quem Sarah Kane é uma descendente, pelo menos por via colateral. Todos eles utilizaram o teatro para inscrever a falta ou a morte do amor num horizonte ideológico: qualquer coisa assim como a voz da época, mas uma voz compósita, estilhaçada em fragmentos que compete ao espectador identificar e unir.Sarah Kane é pegar ou largar. Por mim pego, porque o espectáculo é realmente belo. Mas ao terminar estas impressões, não resisto a citar, talvez a despropósito, uma nota de Arthur Adamov datada de 1964: "O teatro devia situar-se sempre nos confins da vida individual e da vida colectiva. Tudo o que não liga os homens aos seus próprios fantasmas, mas também aos outros homens, e portanto aos seus fantasmas, e isso numa época determinada, não fantomática, não tem o menor interesse filosófico nem artístico".Sarah Kane é pegar ou largar. Por mim pego, porque o espectáculo é realmente belo.

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