Ninguém pode calar Lydia Lunch

Sem rodeios, ela disse: "Boa noite, Porto. Eu sou Lydia Lunch." Não foram precisas mais apresentações para que a "performer" norte-americana - pela primeira vez em Portugal, anteontem, no Teatro Sá da Bandeira - encetasse o seu discurso provocativo, marcado por agonias de um mundo macilento, estertores de corpos lacerados, obsessões de alcova e imagens de decadência física e mental. "Todos nós nos destruímos em câmara lenta... e nada pode fazer-te parar de sangrar", anunciou à partida, sob potentes luzes vermelhas, para a plateia parcialmente cheia do segundo dia do FalaDura - Festival de Palavras Ditas. A sua metralhadora giratória verbal já estava pronta para confrontar todos, ao longo de quase uma hora, com a débil condição humana. Nem o presidente George W. Bush, nem Nova Iorque, escaparam do alvo certeiro das "spoken words" daquela musa do "underground" - cabeça de cartaz da segunda edição deste festival, integrado no Po.N.T.I.. Embora a carreira de Lydia Lunch preconize hoje os espectáculos de palavras ditas, a artista embrenhou-se por quase todos os domínios da arte nas últimas duas décadas. É curioso que alguém que tenha recorrido à música, à fotografia, ao cinema e à literatura - consagrou-se com o romance não-ficcional "Paradoxia: A Predator?s Diary" - abrace com tanto fervor a oralidade de textos previamente escritos (e alguns improvisos). Numa entrevista à jornalista Theresa Stern, a artista, que já trabalhou com Nick Cave e Marc Almond, explica que debita frases "para confrontar a apatia" e "fazer as pessoas acordarem". Ou seja: Lydia parece ver na fala, na ténue linha que aparta a mensagem do cérebro da vibração das cordas vocais, um antídoto para a anestesia. Pela palavra, torna-se livre e procura libertar. A "performer", que se estreou na banda Teenage Jesus and the Jerks aos 16 anos, anuncia - ora em tom profético ou apocalíptico, ora com sarcasmo e morbidez - aquilo que mais dói na finitude humana: "A Terra nunca lamenta uma ausência". Como uma amante que agride num jogo sexual, lá vem depois a musa de vestido negro dizer em falsete "mas eu chorarei por você", como se estivesse a lamber feridas. Mas poucos minutos separam os espectadores de uma nova chicotada: "Se estão acordados agora, neste tempo, devem sentir-se ameaçados." E aponta o prazer como única forma de vingança. Silêncio. A luz vermelha dá lugar à azul. "Mulheres e crianças, primeiro! Mulheres e crianças, primeiro!", diz Lydia, naquele timbre típico de hospedeira de bordo em pânico controlado. A guerra é o mote agora. "Toda a guerra é uma guerra santa", que se baseia, segundo a norte-americana, num tripé muito instável: Deus, terra ou petróleo. "Se matarmos Deus, talvez as guerras acabem", afirmou, referindo-se Áquele que personifica "o primeiro polícia" do mundo, assim como o primeiro falo do universo. Os disparos não terminam: "A América é o maior terrorista do planeta", "Bush não foi eleito, como todos sabem", as munições não acabam. Porque, avisa ela, até ao último suspiro moribundo, "não haverá uma só coisa da qual deixarei de reclamar". Regressa a luz vermelha. "Quando a inocência é assassinada" e "nós enquanto mulheres" são espécies de refrões que endossam um texto feminista - ou humanista, denominação que Lydia prefere - de reflexão sobre o corpo. O tema da obsessão pela imagem física emerge com força dos lábios da artista que, já na casa dos 40 anos e com algum peso a mais, esteve habituada a trabalhos como modelo fotográfico. Movendo apenas a mão esquerda para dar expressão corporal às palavras ditas, a "performer" frisa que a Mulher está na origem de tudo: dos rituais de sangue à dança sob o luar. "A morte sempre pertenceu à Mulher", assim como o sexo e a magia, mas em algum momento "roubaram a nossa religião". Isso porque "o cristianismo é uma perversão da religião". O foco azul volta a envolver Lydia, que promete "alguns poemas de amor": versos sobre maníacos e cleptomaníacos - "meus semelhantes" -, a cena de um crime e um atestado clínico sobre a doença que "envenena" Nova Iorque. Há espaço ainda para as violências infantis de "Murdered sons", a letra-poema de uma canção sobre "os anjos bombardeados", todos eles amados por Lydia Lunch como "nenhuma mãe conseguiria fazê-lo". Feita a justiça das palavras, a "performer" diz um curto "obrigada e boa noite" e retira-se de cena.

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