A poesia da música e a música da poesia

"Nas suas Memórias, o Marquês de Deandeau, Camareiro de Luís XIV, conta como Sua Majestade passeava nos jardins de Versalhes, da parte da tarde, e depois se retirava para o seu aposento por volta das oito horas. Aí terminava a cerimónia de Recolher, mandava vir Robert de Visée, 'Mestre de Guitarra do Rei', bem como Jean Racine e às vezes até um cantor, com a intenção de se divertir nas últimas horas do dia." É com este relato que Vincent Dumestre, director musical do jovem agrupamento Le Poème Harmonique, nos introduz o ambiente que irá recriar no seu primeiro concerto em Portugal (hoje, às 17h30, no Palácio Nacional de Mafra), coincidente com o encerramento do V Festival Internacional de Música. Retomando a luminosa ideia posta em prática no disco "La Conversation" (Alpha 003, dist. VGM), onde a música para teorba de Robert de Visée, interpretada por Dumestre, e os textos do poeta Théophile de Viau, declamados por Eugène Green, estabelecem um íntimo diálogo, o programa dedicado ao barroco francês proposto para esta tarde - "Música e Poesia à Cabeceira do Rei" - proporciona igualmente um diálogo entre os universos literário e musical. Textos de Jean Racine (extraídos de "Andromaque", "Phèdre", "Les Plaideurs" e "Bérènice") alternam com obras para alaúde, canções e "airs de cour" da autoria de compositores como Robert de Visée, Sébastien de Brossard, Marin Marais, Dubuisson, Gabriel Bataille e Michel Lambert. Desta vez, o "diseur" será o actor Jean-Denis Monory, que se tem dedicado ao estudo da declamação e da géstica barroca com Eugène Green no Théâtre de la Sapience.Esta estreita relação entre a música e a poesia é uma das características marcantes da filosofia do Poéme Harmonique. Quer no acompanhamento da música vocal, quer na música instrumental, as suas interpretações procuram privilegiar simultaneamente uma leitura musical do texto literário e uma leitura retórica da música. Uma abordagem que vai directamente ao encontro de um dos repertórios centrais do grupo - o mundo dos "afetti" da música italiana dos inícios do século XVII e dos ideais da "seconda pratica" (que preconizava que o texto devia comandar a música).Outra virtude de Le Poème Harmonique consiste na revelação de compositores hoje esquecidos, cuja música revela surpreendentes traços de inovação e ousadia. É o caso dos dois magníficos registos de estreia (coincidentes com o lançamento da primorosa etiqueta discográfica Alpha, na qual cada disco é concebido como uma obra de arte em todas as suas dimensões) dedicados a Bellorofonte Castaldi (1580-1649) e Domenico Belli (?-1627), dois contemporâneos de Monteverdi que compuseram de acordo com o novo estilo "rappresentativo" e exploraram habilmente a expressão individualizada das mais profundas paixões humanas. Contando com a incandescente intervenção dessa grande senhora do canto barroco que é Guillemette Laurens, estes dois CD causaram um estrondoso impacto no meio musical, valendo-lhe, para além de numerosos prémios, a atribuição da distinção "Joven Talento do Ano" a Vincent Dumestre pela revista Diapason.Seguiu-se "La Comédie Humaine", com "airs de cour" de Estienne Moulinié (Alpha 005) e uma curiosa combinação das tradições eruditas e populares do "Stabat Mater" no século XVIII (Alpha 009). Em conjunto com Les Pages et Les Chantres de la Chapelle, do Centro de Música Antiga de Versalhes, evoca-se o que poderia ter sido a interpretação do célebre "Stabat Mater" de Pergolesi na corte francesa por um coro de vozes brancas e alguns jovens solistas. Com Patrizia Bovi, Pino de Vittorio e Bernardo Arietta, que utilizam colocações vocais típicas da música tradicional do Sul de Itália para dar vida a vários trechos monódicos e polifónicos baseados no texto do "Stabat Mater", recriam-se as devoções populares setecentistas e as exuberantes procissões napolitanas. O último trabalho discográfico do grupo reconduz-nos de novo ao maneirismo italiano através de mais uma interpretação de grande intensidade expressiva, misto de misticismo e dramatismo, das "Lamentações de Jeremias", de Cavalieri (Alpha 011).Assim se compreende que, em apenas quatro anos, Le Poème Harmonique se tenha imposto como um dos projectos mais interessantes e inovadores no actual panorama da música antiga. O percurso anterior de Dumestre foi semelhante ao de muitos dos seus colegas, mas a ele se pode acrescentar uma vasta cultura nos vários domínios artísticos que reverte directamente para a interpretação e para uma criteriosa selecção de repertório. Diplomado em História de Arte e em guitarra clássica, Dumestre optou a partir de 1991 por se dedicar aos instrumentos antigos de corda dedilhada (alaúde, guitarra barroca e teorba), tendo estudado com Hopkinson Smith, Eugéne Ferré e Rolf Lislevand. Antes de fundar Le Poème Harmonique, em 1997, aperfeiçoou o seu saber e experiência no seio de agrupamentos como o Ricercar Consort, La Simphonie de Marais, Le Concert des Nations, A Sei Voci ou La Grand Écurie et la Chambre du Roy, com os quais fez numerosas gravações.Nesta sua passagem por Portugal, Le Poème Harmonique apresenta-se numa formação reduzida, que inclui, para além de Dumestre e Monory, a soprano Claire Lefilliâtre - uma voz marcante nas já referidas gravações dedicadas a Moulinié e a Cavalieri - e a gambista Sylvie Moquet, antiga discípula de Jordi Savall e habitual colaboradora de outros nomes sonantes da música antiga, entre os quais Herreweghe, Christie, Rousset e Maria Cristina Kiehr.

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