Anime, o êxtase da destruição

Antecipação científica, ciberpunk, fusão do corpo com a máquina, terror atómico e outros fantasmas. Por estes terrenos explode a animação japonesa. O Ciclo Anime, em Lisboa, no Cine 222, é para fruir até ao êxtase.

A imagem mais usual no Ocidente dos "animes" (nome como são conhecidas as imagens animadas japonesas) são as figuras estilizadas, de longos, multicolores e grandes olhos amendoados. É a faceta mais conhecida, mas também a mais "kitsch", e a que invade o mercado e a televisão, com as suas raparigas de fatos espaciais e longas cabeleiras azuis. Mas há um outro lado, onde convivem formas mais perturbadoras de antecipação, onde emerge a cultura ciberpunk e novas leituras do corpo humano. O exemplo mais acabado é o filme de animação "Akira", um dos quatro títulos que vão ser exibidos, entre 5 e 16 de Novembro, no ciclo Anime, no Cine 222, em Lisboa (os outros são "Perfect Blue", "Ghost in the Shell" e "Blood - The Last Vampire"). O "anime" tem recebido as mais diversas formulações ao longo das suas três décadas de existência. Se tem acompanhado séries de animação na TV - isto para nos reportarmos aos anos 70 em Portugal -, saiba que "Heidi" e "Marco" foram referências (então dominantes) do género. O "anime" - derivação das mangas (banda desenhada japonesa) - nasceu no Japão do pós-guerra, como vontade de afirmação de um país. Num período de conflitos de identidade, de fantasmas subjacentes ao terror da bomba atómica, havia a necessidade de relançar a indústria do lazer (e criando os seus próprios filmes de animação, competia com a animação americana da Disney). E foi assim que, a partir dos anos 60, o "anime" se tornou um dos motivos maiores da televisão japonesa. A série "Astro Boy", de Osamu Tezuka, marcou, a partir de 1961, um dos apogeus. Começava uma das indústrias mais rentáveis (e exportáveis) do Japão. Tezuka era um autor de manga, que em 1947, quando lançou a sua primeira obra, "A Nova Ilha do Tesouro", apresentou uma nova dinâmica visual, procurando uma estranha poética que anunciava os olhos amendoados, as linhas de perspectiva que pareciam saltar das pranchas. Seriam estas características que, com "Astro Boy", dariam origem ao "anime" na forma como hoje o conhecemos.Pesadelos. Ao género foram, ao longo dos anos, acrescentadas variações. Nos anos 70, explodiu mesmo em várias direcções, tornando-se "mais adulta". Isso equivalia a dizer "mais futurista" - a sofisticação do traço de séries televisivas como Speed Racer ou Lupin Sansei, que abre com a irrisão da violência e do "gore". Em "Star Blazers" - a história, como em "Astro Boy", é a de um rapaz falecido que regressa sob a forma de robô -, Leiji Matsumoto mostra o carácter complexo dos seres mecânicos, como se, herança dos "Godzillas" dos anos 50 e 60, despertassem monstros cada vez mais complexos, com o humano a misturar-se com categorias cibernéticas. Nos anos 80, a televisão e os seus produtores começam a exigir um crescente grau de sofisticação técnica, tendência que se acentua pelo aparecimento do vídeo. Os realizadores passaram então a ser recrutados directamente ao território das mangas - um deles, Akira Toriyama, seria mais tarde o autor do celebrado e polémico Dragon Ball. O "anime" começa então a apontar para novas formulações, abrindo-se a experiências autobiográficas, como em "Barefoot Gen". Este "anime", datado de 1983, e realizado por Masaki Mari, adapta uma "manga" em que o próprio autor, Keiji Nakasawa, conta o seu percurso traumático em Hiroxima, a partir do desaparecimento dos pais sob o efeito mortal das radiações - imagens explícitas de horror.A ficção científica também entra em força no género. Inspirado nas novelas futuristas de William Gibson e Bruce Sterling, abriu-se à cultura ciberpunk. Para uma geração de "hackers" informáticos obcecados por mundos virtuais e apocalípticos - e vivendo à volta dos jogos de computador e dos "chats" dedicados aos "animes" e às mangas - o mais conceituado dos autores é Katsuhiro Otomo. Frequentador do "bas-fond" japonês, junto de gigolos e "yakuza", realizaria em 1989 a versão cinematográfica de "Akira", retirada da sua própria manga original de 1982. A partir daí não era mais possível olhar para a animação japonesa senão como um género dentro do cinema. Muito mais do que uma ficção apocalíptica, "Akira" junta a espectacularidade das imagens à simbologia dos pesadelos atómicos da II Guerra Mundial. Omnipresente, em "Akira", está a metrópole futurista (evocando "Blade Runner", de Riddley Scott) e uma sociedade fascinada pela violência. Filme de culto, de catarse, tem ainda uma componente "filosófica", através da personagem homónima, símbolo do poder absoluto, signo de destruição mas também de renascimento. Não é de estranhar que o filme tenha sido descrito como um hino à destruição, algo que o próprio autor, confirma. "Para mim, o êxtase na banda desenhada culmina nas cenas de destruição. Desenhar coisas que se fragmentam, por si próprias, é uma experiência muito agradável", salientaria Otomo em entrevista. O espírito das máquinas. Levou tempo aos Estados Unidos para descobrir que o género "anime" tinha possibilidades que faltavam ao cinema de animação americano. Mas, quando isso aconteceu, a Disney assinou um contrato com uma das maiores produtoras japonesas, a Ghibli, para a distribuição dos seus produtos no continente americano. O objecto era, sobretudo, séries como Dragon Ball, Pokémon, sinais de um novo paradigma - enquanto nos anos 60, a manga passava directamente para cinema, nos anos 90 a televisão estava sempre no meio. Mas ainda assim, nessa década, o filme referência era "Akira". Surgia, entretanto, outro nome, influente, do chamado "new anime": Masamune Shirow, autor das séries manga "Appleseed" e "Ghost in the Shell", esta última adoptada, em 1995, ao cinema. Produção conjunta do Japão com a Manga Entertainment britânica, "Ghost in the Shell", realizado por Mamoru Oshi, foi o primeiro "anime" criado a pensar no mercado internacional. Num mundo dominado pela cibernética, numa atmosfera surreal - as personagens destacam-se de fundos hiper-realistas -, os "cyborgs" tentam descobrir o seu "espírito" ("ghost", a transcendência da "máquina"). "Akira" e "Ghost in the Shell" podem mesmo ser postos em diálogo: o corpo transformado geneticamente, através de drogas sintéticas ("Akira") ou de implantes inorgânicos ("Ghost in the Shell"). Mas a nível técnico, o último leva mais além esses pressupostos, combinando a animação por computador com a animação em 3D.Ao pé destas obras, a primeira longa-metragem de Satoshi Kon, "Perfect Blue" (1999), é mais um olhar sobre o Japão contemporâneo, sobre o mundo das bandas e pop star adolescentes. Kon combina o "thriller" de contornos psicológicos e o onirismo (sequências de grande intensidade plástica), como se o filme flutuasse numa Tóquio de sonho. Os encadeamentos dos planos, a maior parte deles descrevendo cenas de interiores, lembra o cinema de Ozu.Exemplos mediáticos são ainda "Princesa Mononoke", obra de maturidade para o género, entroncando na tradição do cinema épico de Kurosawa (estreou, no ano passado, em Portugal) e "Blood - the Last Vampire", de Hiroyuki Kitakubo. Este, elogiado, entre outros, por James Cameron e Andy Wachowski ("Matrix"), não tem a carga narrativa dos outros filmes que integram o ciclo, mas marca uma nova era, a da animação digital, incluindo técnicas de câmara inovadoras, efeitos de luz digitais e personagens modeladas por computador.

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