Mozart, o preferido de Deus

Descobrir a bibliografia de Pushkin, autor russo que, para muitos, revolucionou a literatura mundial, é também ter o prazer de desvendar pequenas tragédias, nas quais o escritor prodigalizava a intensificação dos conflitos. Além do teatro e da poesia, Pushkin gostava igualmente de redigir breves histórias - três delas serviram de libreto a outras tantas óperas -, entre as quais se destaca "Mozart e Salieri", uma narrativa que inspirou a ópera homónima de Rimsky-Kórsakov e na qual se insinua o alegado assassinato de Mozart pelo seu mais próximo rival, António Salieri, mestre de capela da corte de Viena, nos finais do séc. XVIII. Na biografia de Wolfgang Amadeus Mozart não existem indícios da sua morte ter sido provocada por envenenamento, mas a novela de Pushkin criou uma redoma lendária sobre os dois músicos, que levou o dramaturgo britânico Peter Shaffer a escrever, em 1979, "Amadeus". Estreada no National Theatre, em Londres, a peça recolheu a intriga essencial proclamada por Pushkin, embora a conversão teatral tenha prolongado, em relação ao tempo dramático, a tragédia do autor russo, revestindo-a de trechos musicais retirados de obras de Salieri e Mozart. Desde então, "Amadeus" continua a receber aplausos nos palcos de todo o mundo, tendo sido adaptado ao cinema por Milos Forman, em 1984, com um argumento também escrito por Shaffer."Como é que é possível?" - é a questão interior que o encenador Carlos Avilez coloca sempre que ouve o legado musical de Mozart. A paixão pela sua música e o desejo de encenar "Amadeus" há muito que o aproximaram da obra do compositor falecido prematuramente. A esta profunda intenção veio juntar-se a relação de amizade que mantém com Peter Shaffer, cuja peça "A Real Caçada ao Sol" assinalou a despedida de Avilez do Teatro Nacional D. Maria II. Convidado pela Seiva Trupe para dirigir aquela que é, provavelmente, a peça mais aclamada de Shaffer - "Amadeus" nunca foi representada em Portugal -, Carlos Avilez não escondeu o seu regozijo perante a possibilidade de dirigir uma mega-produção, que conta com os faustosos figurinos de Manuela Bronze e com a mutável e impressionante cenografia de José Rodrigues. Mozart no camião do lixoNesta encenação, que é pautada pelo regresso de Avilez ao Porto - a sua estreia como encenador ocorreu no Teatro Experimental do Porto -, uma das fórmulas mais defendidas por Shaffer é religiosamente perseguida: "Tentei sempre manter uma relação ambígua entre Mozart e Salieri, pois esta era uma ideia sobre a qual Shaffer falava muito". Mas se é notório o ódio que Salieri (António Reis) destila em cada cena num confronto com a ingenuidade quase infantil de Mozart, a encenação de Avilez destaca igualmente a revolta de Salieri contra Deus. Uma cólera que se traduz num conflito religioso - "De que serve o homem se não para dar lições a Deus?", pergunta - e num combate contra "a criatura preferida de Deus", Mozart, um compositor que se notabilizou em todos os géneros musicais, pelo virtuosismo de unificar o poder e a emoção da glória universal da música, a única arte verdadeiramente intemporal. O momento da morte do "intérprete de Deus", envolvido num sudário, mimetiza, por isso, a crucificação de Cristo.Num espectáculo onde a música é também protagonista - a audição de extractos de árias de "Don Giovanni", de "As Bodas de Fígaro" ou de "A Flauta Mágica" sugerem momentos de grande emotividade -, "Amadeus" possui, segundo Avilez, uma forte componente actual. E a justificação reside não apenas no cariz intemporal e "deslumbrante" da música de Mozart, como também numa velada crítica ao poder e ao carácter manipulador daqueles que dominam. Assim, apesar de respeitar integralmente o texto e as didascálias de Shaffer, Avilez não resistiu a acrescentar uma outra solução para a retirada de cena de um Mozart amortalhado. Carregado em ombros, o cadáver é conduzido para o fundo do palco, onde portas de correr se abrem para a traseira de um camião do lixo. E é este o túmulo de Mozart, um transporte de despojos "para onde muitos artistas são atirados", diz Avilez. "Mozart morreu, mas ficou a sua obra; de nós, actores e encenadores, nada resta depois de desaparecermos".

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