Torne-se perito

Como o Sudão ofereceu Osama Bin Laden numa bandeja de prata e como Washington recusou a oferta

Estamos perante uma peça teatral de origem sudanesa-americana, cuja estreia caíu um pouco no esquecimento após os acontecimentos de 11 de Setembro. Mas talvez por isso valha a pena reavaliá-la outra vez.A peça tem quatro protagonistas: Osama Bin Laden, no papel principal; e nos papéis secundários o governo de Cartum, a administração norte-americana em Washington e, como comparsa, a casa real saudita. Cenário: Sudão, país onde se encontrava Bin Laden até à primeira metade dos anos 90.Antecipemos o apogeu deste drama trágico-cómico: trata-se da extradição do actor principal Bin Laden, oferecida pelo governo de Cartum aos Estados Unidos, no intuito de melhorar o (mau) relacionamento entre os dois países. Após dez semanas de reflexão, o governo Clinton recusou com agradecimentos a oferta que lhe era servida numa bandeja de prata - o líder terrorista Bin Laden.Que esta peça teatral não se trata de um mero produto de fantasia africana, confirma-o o antigo sub-mediador e actual embaixador do Sudão nas Nações Unidas, Fatih Erwa, assim como outras fontes norte-americanas citadas pelo jornal "Washington Post", entre as quais a CIA. 1996. As relações americano-sudanesas não estão famosas. Três anos antes, este país africano tinha ido parar à lista dos países mal vistos por Washington. Em Cartum, pensava-se entretanto na melhor maneira de cair novamente nas boas graças dos EUA. Para sondar o assunto, o ministro do exterior sudanês, Ali Osman Taha, convidou o então embaixador norte-americano no Sudão, Timothy M.Carney, para um jantar na sua residência, a 6 de Fevereiro de 1996.Na altura, Bin Laden ainda não era conhecido como o padrinho terrorista. Ainda assim, no interior do Departamento de Estado norte-americano havia provas de que era um dos mais importantes financiadores de grupos islamistas radicais, encontrando-se no topo da lista das contrapartidas exigidas pelo embaixador. O encontro, lembra o hoje M. Carney, foi a primeira conversa substancial com os seus parceiros sudaneses sobre o tema terrorismo. O ministro sudanês Taha mostrava-se particularmente atento.Não tinha ainda passado um mês, quando, a 3 de Março, o brigadeiro Fatih Erwa, na altura ministro da Defesa sudanês, protagonizou em Washington um encontro secreto com o governo. Começavam assim as negociações para o destino de Bin Laden. Os americanos entregaram a Erwa uma lista com o título: "Medidas para Melhorar o Relacionamento com os Estados Unidos", onde Bin Laden ocupava o segundo lugar das exigências. No final das negociações, Erwa ofereceu a extradição do suspeito. O Sudão reconheceria as provas legais, com as quais Bin Laden poderia vir a ser acusado de terrorismo, recorda o "Washington Post".Samuel Berger, na altura segundo Conselheiro de Defesa, disse àquele diário norte-americano que o FBI acreditava ainda não possuir provas suficientes para acusar Osama Bin Laden perante um tribunal, sendo desaconselhada a sua extradição para os Estados Unidos.Os americanos entraram então em contacto com os seus aliados sauditas a fim de ser verificada uma eventual extradição para a Arábia Saudita. Uma ideia que até tinha uma certa lógica: em Riad não gostavam de Osama. Após a Guerra do Golfo, Bin Laden foi expatriado por causa dos seus insultos verbais contra a casa real, acusando-a de fomentar a corrupção. Três anos mais tarde, foi-lhe retirada a cidadania saudita. A esperança da Administração Clinton, como alguns dos seus representantes dizem hoje, era que, aceite a extradição de Bin Laden, este fosse rapidamente decapitado, como era aliás prática comum na Arábia Saudita.O infortúnio de Washington foi que os sauditas não mostraram o mínimo interesse, possivelmente porque receavam efeitos negativos na política interna, e também porque os laços familiares de Osama Bin Laden à família real saudita tinham a seu peso.Entretanto, o governo de Cartum esperava instruções de Washington sobre o que fazer com Bin Laden. Como ninguém queria ficar com ele, a Casa Branca decidiu, segundo afirma Steven Simons, antigo director para medidas antiterroristas no Conselho de Segurança Nacional, que seria melhor que este fosse expulso do Sudão, na esperança de que ele não pudesse continuar a chefiar a sua rede financeira.O brigadeiro sudanês Erwa argumenta actualmente que Osama Bin Laden nunca teria podido evoluir no terrorismo internacional se tivesse permanecido no Sudão. Durante toda a sua estadia os americanos não puderam apresentar provas suficentes para o incriminar oficialmente. Segundo parece, o anterior governo norte-americano sobreavaliou as vantagens de Bin Laden ficar à frente da sua rede financeira no Sudão, menosprezando simultaneamente as suas possibilidades destrutivas no Afeganistão. E Osama mostrou ser capaz de gerir o seu império financeiro a partir do Afeganistão.A 15 de Maio de 1996 o ministro do exterior sudanês, Taha, dirigiu um último fax ao então embaixador norte-americano Carney, em que dizia que o seu governo tinha pedido a Osama Bin Laden que abandonasse o país. Três dias volvidos, Osama partia num avião fretado a caminho do Afeganistão. Até hoje a administração norte-americana não chegou a um acordo em como lidar com o Sudão. Durante anos discutiu-se à porta fechada se o Sudão deveria, ou não, ser isolado como um país de malfeitores. No início de 1998, a fracção dos duros conseguiu finalmente afirmar-se. Mas esta nova linha redundou alguns meses mais tarde num total fiasco, quando os Estados Unidos bombardearam uma fábrica farmacêutica em Cartum como resposta aos atentados às embaixadas norte-americanas em Nairobi e Dar-es-Salam. Na altura, a CIA foi atrás de um boato sobre o fabrico de armas químicas na dita fábrica. Entretanto, o proprietário da fábrica atingida pediu uma indemnização aos Estados Unidos pelo prejuízo causado. A partir de então as relações entre os Estados Unidos e o Sudão congelaram.Desde o 11 de Setembro que o Sudão coopera activamente com os EUA fornecendo informações vitais sobre a rede financeira de Bin Laden, apesar de uma forte oposição política interna. Fizeram-se progressos no diálogo sudanês-norte-americano, afirma o Deparmento de Estado, mas é preciso mais-Entretanto tem havido reacções positivas. A maioria das sanções simbólicas contra o Sudão foram levantadas o mês passado. Oficiais de alta patente sudaneses podem requerer vistos para os EUA e as conferências internacionais têm novamente permissão para serem efectuadas em Cartum. Um decreto-lei que proibia todas as empresas no mercado de norte-americano de comprarem acções que tivessem relacionadas com a prospecção do petróleo do Sudão, foi entretanto anulado. E o que ainda é mais importante para este país africano é que em Washington se pense seriamente em ajudar a acabar com a guerra civil no sul do Sudão e não em fomentá-la com a ajuda da América.

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