De Goya a Bacon

Em Lisboa, o Centro Cultural de Belém acolhe duas exposições vindas, respectivamente, do Museu de Belas-Artes de Lyon e do Museu do Prado. Muito diferentes, "De Picasso a Bacon" e "Os Caprichos" de Goya têm o mérito de pôr o público português em contacto com parte de duas excelentes colecções estrangeiras.

Jacqueline Delubac será um nome que dirá alguma coisa a alguns portugueses, mas não é decerto um nome que associemos imediatamente à arte contemporânea europeia. De facto, Delubac foi uma das actrizes mais famosas dos meados do século XX em França, e será por aí que o público a recordará. Contudo, era natural de Lyon, e foi ao museu de belas-artes desta cidade francesa que doou a sua estimável colecção de arte contemporânea. Assim, a partir de 1997, esta instituição passou a contar com um acervo notável de obras de artistas franceses, e não só. A actual colecção revela, desde logo, que um museu de província, se pode contar com a generosidade criteriosa dos particulares, acaba por se revelar um exemplo perfeito em termos de acervo e representatividade. De facto, se é hoje praticamente impossível a uma instituição que funcione com orçamentos estatais adquirir as melhores obras contemporâneas (ou as mais caras), mesmo em França, uma doação pode suprir esse tipo de falhas e ajudar a criar um panorama mais que aceitável do que tem sido a arte desde finais ou meados do século XIX até aos dias de hoje. É exactamente isto que se passa com a colecção do Musée des Beaux Arts de Lyon / Colecção Delubac, de que o Centro Cultural de Belém apresenta agora uma selecção bastante vasta. Quase ao mesmo tempo, inaugurou naquela instituição francesa uma outra selecção, desta feita da colecção Berardo, que como se sabe, está orientada para a arte internacional do século XX, e que esteve em tempos apresentada exactamente no mesmo espaço do CCB onde agora se mostra a exposição de Lyon. Os paralelismos entre as duas colecções terminam aqui; a de Lyon incide, actualmente, sobre a arte realizada em Paris desde finais do século XIX, com algumas excepções de peso; a de Berardo tem um pendor cosmopolita muito forte, que tem sido equilibrado ultimamente por aquisições dentro da arte portuguesa actual. E, assim, agora é a oportunidade talvez única de ver um belíssimo Picasso do Período Azul, um "Nu com meias vermelhas" datado de 1901, e que é um dos ex-libris do Museu; ou de ver obras de Dufy, Marquet, ou um belíssimo retrato de Suzanne Valadon, todos datados dos primeiros anos do século; dos russos emigrados em Paris, Gontcharova e Larionov, também pertencentes à colecção inicial do museu. Porque os gostos de Delubac orientavam-se mais para os movimentos de vanguarda, como é bem patente nas obras que se encontram nas salas seguintes. Na realidade, o quadro de Picasso já referido, embora tenha entrado no museu graças à doação da actriz, pertenceu à colecção do seu segundo marido, Myran Eknayan, de origem arménia, que se interessava de preferência pela arte romântica, realista, impressonista e pós-impressionista. Eram dele as obras de Degas, Corot, Monet, Manet e Renoir que pertencem agora ao museu; deste núcleo, só a peça de Picasso veio a Lisboa, por razões que se adivinham facilmente. Jacqueline Delubac comprou sempre obras de artistas vivos, e com facilidade optava pelas correntes mais vanguardistas ou provocatórias do seu tempo. Também nem todas as suas obras chegaram ao CCB, e entre estas contam-se, por exemplo, uma "Mulher Sentada na Praia", também de Picasso (1937), ou um pastel de Miró ("Figura", de 1934).Contudo, tendo ou não pertencido à colecção Delubac, o que está no CCB é suficiente para surpreender e cativar o visitante. A montagem começa com um conjunto de biografias dos artistas representados apresentadas de modo espectacular, e segue com um retrato da actriz feito por Bernard Buffet, no estilo que caracterizou a obra deste autor, embora cedendo às convenções tradicionais de uma das poses características deste género. Depois da primeira sala, já referida, continua-se com uma apresentação cronológica de autores e obras, que tem o mérito de acompanhar a apresentação tradicional da história da arte. O Braque cubista, uma das primeiras obras compradas por Jacqueline Delubac, junta-se com um outro magnífico quadro deste pintor, peças do casal Delaunay, uma obra surpreendente de um autor menos conhecido, Léopold Survage (também de origem russa), uma tela espectacular de Henry Hayden ("Le Jazz-Band", de 1920) e outra de Léger, do ano seguinte. Esta última, aliás, foi uma das últimas obras compradas pela actriz.Na segunda sala, optou-se por mostrar os contrapontos figurativos contemporâneos das descendências cubistas já referidas. Há dois Matisses, e sobretudo cinco pinturas de Bonnard que representam de modo exemplar a mestria da luz e da cor que este pintor inclassificável possuiu. A exposição segue com telas de Rouault, entre outras, das quais uma pertenceu à colecção Delubac, e incide depois sobre os surrealismos finais. Masson, Lam, Brauner, para só citar os membros oficiais (mas Chagal e uma obra tardia de Picasso inserem-se na mesma linha de preocupações estéticas) estão muito próximos, no espaço da exposição, das abstracções da Escola de Paris. Aqui, uma tela de Maria Helena Vieira da Silva é colocada no seu contexto artístico próprio, ou seja, lado a lado com Nicolas de Staël e Poliakoff, cuja obra se continua na última sala com outros artistas franceses de opções plásticas semelhantes. Contudo, esta sala funciona como o ponto final da colecção. E, por isso, encontramos aqui duas das melhores obras apresentadas, duas telas de Francis Bacon.As telas são de grande formato, e condensam as pesquisas espaciais, plásticas, temáticas e formais do autor. Numa, há uma cena em que um touro é combatido por um homem, noutra uma peça de carne pendurada convive com uma ave de rapina. O espaço tridimensional, indicado esquematicamente, funciona como um palco onde a cena violenta, como a pintura de Bacon sempre o é, se passa. E depois há a pintura, exuberante, contida pelos espaços deixados virgens nas telas, e que se continua nas obras de outros autores (Tapiès e Dubuffet, nomeadamente) que lhe são vizinhos.Classicamente (as biografias expostas, que não explicam as obras nem o poderiam fazer, lá estão para o comprovar), e graças a uma coleccionadora que foi tudo menos clássica nas suas opções, esta é uma seleção bastante completa e representativa da arte francesa contemporânea. A excepção vinda da Grã-Bretanha acrescenta-lhe qualidade e confere-lhe uma personalidade própria que poderá ser, de futuro, acentuada.Se "De Picasso a Bacon" é também uma exposição didática, "Os Caprichos" de Goya, que o CCB expõe na galeria da cave normalmente reservada às exposições de fotografia, é antes de tudo o mais uma exposição didática. Primeiro, porque se trata de gravura, e porque se optou por apresentar, com as explicações técnicas necessárias, alguns dos vários estádios por que cada peça passou antes da tiragem final; depois, porque o propósito da realização destes "Caprichos" foi, ele próprio, didático. Goya desejou mostrar, na melhor tradição iluminista, os males da sociedade do seu tempo, e é disso que os "Caprichos" tratam. Fixando-se na técnica e no tema, e excluindo qualquer análise estilística ou plástica, a exposição pode revelar-se um pouco frustrante. Mas trata-se de Goya, sem dúvida, e não é todos os dias que se pode ver gravura de Goya em Lisboa."Os Caprichos de Goya" resulta também de uma troca com o Museu do Prado. Para a capital espanhola seguiu "Desenhos de Mestres Europeus nas Colecções Portuguesas", exposição mostrada neste mesmo local há tempos, e que foi, na época, uma das melhores iniciativas do género feitas de raiz em Portugal. "Os Caprichos de Goya" não inclui todas as peças pertencentes a esta série, mas apenas uma selecção, feita nos acervos do Museu do Prado e também na Calcografia Nacional de Espanha. Contudo, esta selecção é representativa dos propósitos da exposição, ou seja, do domínio da utilização de todos os recursos da gravura para atingir os efeitos plásticos pretendidos que Goya demonstra.Pintor de múltiplas facetas - foi pintor de corte, de história, decorador, e nesta série, bem como nos "Sonhos", revela um entendimento romântico e fantástico dos temas abordados - Francisco de Goya y Lucientes (1746 - 1828) realizou os "Caprichos" numa fase particular da sua vida, quando se encontrava convalescente de uma grave doença em Cádiz, em casa de um famoso coleccionador de estampas da época. Surdo, interessa-se cada vez mais, nestes finais do século XVIII, pelo desenho sistemático, que lhe proporciona a oportunidade de exercitar "o capricho e a invenção", como então diz. Se a gravura era o meio por excelência de divulgação das imagens nessa época, e por isso muito utilizada, já o desenho de "carprichos e invenções", embora integrável nos objectivos do Romantismo, não o são. Está aqui, sem dúvida, uma das razões do sucesso e da influência do artista em toda a arte do século XX.E, de facto, é de invenção que se trata nesta exposição, que convém visitar demoradamente, com tempo para parar diante de cada gravura e reflectir sobre o que se vê. O "Capricho 21", por exemplo, intitulado "Como a depenam!", mostra uma cena em que três personagens masculinos, mas de rosto de leão, depenam uma ave com rosto e seios de mulher. O desenho, que representa a prostituta vítima da justiça dos homens, é tratado de forma alegórica; mas as associações são suficientemente claras para poderem ser feitas pelo público da época.Finalmente, há o trabalho do autor, desde os traços rápidos do desenho inicial, até à escolha da técnica que irá dar o maior relevo dramático à acção desenhada, desde a escolha da sanguínea até ao trabalho técnico com a água-forte ou a água-tinta. É aqui que reside um dos grandes interesses da exposição, aliás servida por um catálogo que a completa com pormenores técnicos e historiográficos de importância.

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