Torne-se perito

Peshawar: gritos de guerra, paus, fogo, nenhum ferido, nenhum estrago

Às dez da manhã já havia um engarrafamento monumental no centro de Peshawar. O habitual novelo de autocarros coloridos, motos, bicicletas, riquexós, tentava desembaraçar-se em qualquer direcção, contornando as ruas tapadas por barreiras de fardas caqui (o exército) ou de camisas negras (a polícia). Ao longo do caminho para Namak Mandai, o mercado do sal, os passeios, de um lado e do outro, estavam cheios de escudos, viseiras e metralhadoras. É em Namak Mandai que fica uma das mesquitas mais radicais de Peshawar (cidade paquistanesa junto à fronteira com o Afeganistão), ligada a Fazlur Rehman, o líder da Jamiat-e-Ulema-Islami (JUI).As autoridades paquistanesas prenderam Rehman no primeiro dia da ofensiva americana, como precaução contra apelos incendiários, o que não impediu outros líderes da JUI de continuar a convocar para Namak Mandai os protestos anti-Bush-Blair-Musharraf da primeira sexta-feira (dia santo no Islão) depois dos ataques aéreos.Entre a tropa e os carrinhos de cana de açúcar e bananas, centenas de manifestantes vão avançando a pé. Muitas bandeiras pretas e brancas (as da JUI), muitos paus, retratos de Bin Laden enquanto herói, retratos de Bush enquanto cão.Perto da mesquita, as ruas são de bazar, labirínticas, estreitas. A mais larga está repleta, aparentemente sem polícia. Mas olhando as laterais, as tropas formam um cerco. Também estão no cimo dos prédios, de arma em riste, ao lado dos "cameramen".Já não se pode andar mais. A multidão está compacta. Da mesquita vem a voz do "mullah" por altifalantes. "Esta é uma guerra pelo Islão." Os manifestantes erguem os cartazes, maioritariamente em inglês: "Até à destruição total da América." Ou então: "Bush-Blair-Musharraf: os três irmãos cão." A eleição de Blair como inimigo é recente, não aparecia nos cartazes das manifestações há três semanas.Um rapazinho anda a tentar vender "t-shirts". São brancas, têm um retrato de Bin Laden a preto e branco. Frase de cima: "A jihad é a nossa missão". Frase de baixo: "Osama, o grande mujahedine do Islão". Tudo em inglês. Nenhum muçulmano as compraria. Chama-se Shawli e tem 14 anos, este pequeno mercador de uma causa santa: "Estou aqui pelo Islão. Estamos prontos a dar as nossas vidas por Osama e pelos taliban. São os nossos heróis." Shawli é afegão? Não. É paquistanês, como todos os manifestantes com que o PÚBLICO falará.Abdul Rachid, 25 anos, barba espessa: "Somos todos paquistaneses, mas agora somos afegãos, no fundo do coração." Irá lutar uma guerra santa, como o "mullah" está a pedir? "Logo que puder. Darei a vida."Rezuan, 30 anos, ergue um cartaz que diz: "Se a América entrar no Afeganistão haverá uma jihad". É membro do ramo estudantil da JUI. Paquistanês. "Quando os americanos vierem por terra, a guerra vai começar. Que Deus nos ajude." "Inch' Allah!, Inch' Allah!", gritam dezenas, já à nossa volta. Por cada conversa com um jornalista estrangeiro, forma-se um cerco, em segundos.Najundin, 18 anos, covinhas na cara, um projecto de barba a crescer. Estudante de uma madrassa. Paquistanês. "Viemos para lutar. Os ataques são cruéis. A América é terrorista." O coro em volta grita: "Osama, Osama!" Aparece um barbudo com um pau, a afastar-nos: "São proibidas as declarações." Mudamos de zona.Liaqatali Shah, 23 anos, estudante de Ciências Políticas da Universidade de Peshawar. Lenço a tapar o queixo. Paquistanês. Fala um inglês impecável: "Esta manifestação é contra o governo ditatorial de Musharraf. Porque não nos pediram um referendo? A América está a matar inocentes, como na Líbia, no Sudão, no Iraque, na Palestina. Como matou em Hiroxima. Estamos com os nossos irmãos afegãos. Daremos as nossas roupas, as nossas vidas. Esta não é uma guerra contra os terroristas, é uma guerra dos terroristas americanos contra os inocentes. Sou muçulmano, e Musharraf é um traidor dos muçulmanos."Fazlur Rehman, 18 anos, estudante de uma madrassa com o mesmo nome do líder da JUI. Paquistanês. "Bin Laden é o meu irmão muçulmano. Acima de tudo sou muçulmano."Ainda encontraremos mais meia dúzia de paquistaneses. Nem um refugiado afegão. A conclusão poderia ser: teve efeito a ameaça feita anteontem pelo governo paquistanês de que deportaria os refugiados afegãos que participassem em "distúrbios" nas manifestações. Mas também é verdade que, desde o princípio, têm sido os partidos islâmicos paquistaneses, e não os refugiados, a lançar os "slogans" mais sangrentos.Passa um homem com uma gaiola tapada, outro empurrando um carrinho com cana de açúcar cortada em pedaços, outro ainda vendendo água com pedaços de gelo. A maior parte das lojas está fechada, mas o mercado ambulante vai aproveitando a concentração. A massa move-se agora para a rotunda de acesso à mesquita, onde está uma espessa barreira de polícias, com metralhadoras, viseiras e escudos. No meio dos manifestantes, um carro, com um altifalante mantém as mensagens ao rubro. De repente, chamas.É um Bush de pano a arder. Depois uma bandeira americana. A multidão aproxima-se da barreira policial e berra: "Musharraf cão! Musharraf cão!" Os agentes mantêm-se imóveis. Alguns seniores da JUI afastam os manifestantes dos polícias e dos jornalistas, com o argumento: "Vem um mau cheiro dali". Isto, segundo o resumo moderado do tradutor do PÚBLICO.Entre todos os cartazes, distingue-se ainda um, pelo esforço artístico: é uma série de três campas, a cores, em perspectiva. A mais antiga tem uma bandeira britânica (Afeganistão, século passado). A segunda tem uma bandeira soviética (Afeganistão, há 20 anos). A terceira está aberta. A legenda diz: "Benvindos sejam os próximos invasores."Às 13h15, o protesto começa a desfazer-se. É tempo de oração. Uma hora mais tarde, quando o PÚBLICO volta a atravessar esta zona, não há sinais de bandeiras, nem de Bin Laden, e dezenas de militares conversam e bebem refrescos, sentados nos passeios. A greve geral, convocada pela JUI, mais uma vez, deu em nada. Todas as lojas estão abertas. O bazar é uma roda viva.

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