Teoria da decepação

"Parasceve" é uma promessa: não um fim, mas um começo. Um novo começo na obra de Maria Gabriela Llansol. Segue-se análise muito pessoal feita por um seu leitor, aspirante a seu "legente".

Os últimos livros de Maria Gabriela Llansol, em especial "Onde Vais, Drama-Poesia?" e agora "Parasceve", dizem-me duas coisas essenciais. Essenciais para a compreensão da totalidade da sua obra, ou, se quisermos, do contínuo que é o seu texto; e essenciais para mim, seu leitor que quer ser seu "legente" (leitor activo). A primeira é que, para além da grande viragem que os últimos livros indiciam (em termos muito simples, mas de enorme alcance no que se refere ao redimensionamento da possível universalidade desta obra: a distância que vai de um espaço de escrita ocupado por figuras da História com nomes próprios a um outro, em que as figuras passaram a ter nomes comuns), aquilo que "Parasceve" nos oferece é uma intensificação e uma renomeação de um projecto de escrita e de existência que vem já do Lugar 1 de "O Livro das Comunidades". A segunda coisa essencial em "Parasceve" é que este texto, de uma intensidade ímpar, me interpela de forma radical para me dizer o que eu julgava saber: no momento em que a escrita se te tornar transparente e o novo conhecível e conceptualizável, não vale a pena leres-me! Se eu, leitor que quer ser "legente", algum dia chegar a pensar que posso "possuir" este texto ou uma qualquer "chave" que lhe abra todas as portas (como, mais facilmente, posso dizer de outros), então ter-se-á perdido o que nele há de mais próprio e que é o seu ser-enigma, a sua vontade de ser escrita nova, produto de uma progressiva "decepação" (eliminação do narrativo, da metáfora, a caminho de um destino final, com a consciência de que não se decepou ainda "o nó do imaginário", para deixar o texto em carne viva). E ter-se-á perdido também o seu apelo a uma leitura como "des-possessão" (de um texto que só é ele próprio quando entra em perda de sentidos redutores e explícitos), como Silvina Rodrigues Lopes já mostrou num ensaio seminal sobre esta obra, em 1988. O fim - termo e finalidade - da escrita em Maria Gabriela Llansol continua, assim, em aberto, mas cada vez mais próximo daquele momento em que entre mão - "decepada" de tudo o que (lhe) é supérfluo - e texto não haverá fronteira. O texto vai a caminho, e esse caminho, ainda não totalmente percorrido, já vem a ser feito desde que a Comunidade de Ana de Peñalosa começou a copiar o texto de João (da Cruz). Mas "Parasceve" - que é o dia da morte de Jesus e do ritual preparatório do sábado judaico -, no livro, é o nome de um rapazinho, "delicado, mas firme", a criança que tem o "ruah", o sopro, a linguagem elementar que ainda não temos, que deixámos de ter. Parasceve é uma promessa: não um fim, mas um começo. Um novo começo na obra de Maria Gabriela Llansol. As duas vozes principais do texto são a da mulher - mulher sem nome, mãe de uma nova geração de figuras sem nome, porque os nomes se tornaram "som e fúria, e não significam nada", mas capaz de pôr as palavras do dicionário a andar, mulher-híbrida de lobo que busca "o arcano do espírito bravio", versão mais universal dos "Rebeldes" de outras geografias textuais - e a do plátano que dá pelo nome de Grande Maior, espécie de "axis mundi", cidade-árvore cujas folhas falam, lugar da pujança onde não há morte e ponto de convergência dos contrários que se completam, o "sempre máximo" e o ínfimo, necessidade absoluta e "não-uso", verso, reverso e unidade. Essas duas vozes não são já nem sequer as das figuras-em-devir dos livros anteriores: são vozes-acontecimento, manifestações do "carbono-Vivo", e por isso rejeitam quer a tentação teológica do inexplicável e do indizível, quer a memória (no texto, é clara a oposição entre ser e lembrar-se: "Ter um tronco e equilibrá-lo é preferível a ter memória"). O que aqui, no espaço sem tempo e sem distinções do texto e dos seus "textuantes" maiores, se diz, diz-se sempre pela primeira vez assim. Há mais luz e menos enigma em "Parasceve" do que na primeira trilogia de Maria Gabriela Llansol, porque agora se trata simplesmente de "transpor para a consciência quotidiana o que, durante séculos, fora atribuído ao êxtase", num livro que, apesar da "conjectura grave" que o orienta, em si é "leve e jubiloso", como deve e pode ser a vida comum. Mas, dizia Maria Gabriela Llansol já num texto de 1994 (por altura de um "Parlamento Internacional de Escritores" reunido em Lisboa, e a que não compareceu), "o homem comum está continuamente a ser excluído e espoliado da pujança" (pelo poder). A "conjectura grave" deste livro é a dos caminhos que podem levar à restituição dessa pujança.Mas perguntamo-nos: e como, se os lugares do que devia ser pujança estão anémicos, e o poder cada vez mais insensível? Parasceve é o anúncio, não a coisa acabada, que não há. O livro é um projecto (de escrita), uma utopia (de vida), e as duas coisas não se distinguem. Esse projecto é proposto aqui por meio de um jogo, um conjunto de "puzzles" a que não falta a sua ironia ("Parasceve" tem como subtítulo "Puzzles e ironias"). O "puzzle" é "o espírito bravio a penetrar no seu próprio arcano", a ironia que o acompanha "é esse arcano ser menino". O "puzzle" é a infância (que também pode ser lida como a figura das origens, um estado de consciência nu e não-trágico, com a sua "linguagem-princeps do neutro", linguagem do lobo que "não acreditava no indizível de qualquer linguagem do desejo") a querer saber o que é e quem é, mas sem ser ainda capaz de se perceber como "puzzle"; e é também a mulher, obcecada com a figura da infância, que sabe saber - mas já não pode "ser" a infância, resolver o "puzzle", por mais que dialogue com o Grande Maior, com o "olho da árvore". O livro de Maria Gabriela Llansol é a escrita desta ironia, entre o ainda-não e o já-não. As "nossas vidas" passar-se-ão mais ou menos nisto, e quando estamos a ponto de penetrar "o arcano do ser menino", vem o medo (mesmo a mulher-híbrida de lobo - ou precisamente ela - sente, a um tempo, a pujança e o medo). É enquanto busca desse arcano que a existência é um "parasceve": eterna preparação de um estado que se nos nega. Nela, o texto, a linguagem, é a única protecção contra as "ficções", as "patetices românticas" (de que a literatura continua a estar cheia) e a inautenticidade do mundo "impreciso" ("há muita névoa, nessa zona de baixas pressões da vida"). Por isso, o livro se faz com instrumentos de escrita e de experiência inabituais, como a decepação, a marca do vazio, o não-uso. Por isso, o texto se adapta às metamorfoses da figura (mulher) e "vai adiante", tem um ponto de vista, é montagem precisa e sensível, que não faz distinções, de "cenas A4". Cenas-fulgor ainda e sempre, lugares onde alguma coisa emerge e pede para ser vista. Mais nada. O resto (tudo) é texto.

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