Lisboa celebra 100 anos do nascimento de José Rodrigues Miguéis

José Rodrigues Miguéis é um dos maiores escritores da língua portuguesa. Nasceu com o século, em 1901 (dia 9 de Dezembro), em Lisboa. De origem galega pela parte do pai e coimbrã pelo lado materno. Veio a falecer, em Nova Iorque, em Outubro de 1980. Para a posteridade - embora seja hoje um escritor esquecido, como tantos outros, da primeira metade do século XX português, e a que, pelo andar da carruagem, se juntarão muitos outros da segunda metade - deixou-nos uma obra multifacetada, de 17 títulos e muitos textos espalhados pela imprensa, de todos os géneros e feitios. Uma obra que será objecto de debate durante três dias na capital, entre 8 e 10 de Outubro próximos.Depois de ter feito os seus estudos primários - pano de fundo do livro "A Escola do Paraíso" -, acabou por se licenciar em Direito, pela Faculdade de Lisboa, em 1924. Os anos 20, com todas as confusões que a passagem da Monarquia para a República tinha lançado na sociedade portuguesa, eram marcados, à "esquerda", pela "Seara Nova", sob a direcção de António Sérgio, que via em Miguéis "um espírito rico, variado, insinuante, fino e o mais admirável que jamais ouvi na minha língua". Será, no entanto, depois de uma polémica que manteve com Castelo Branco Chaves que Miguéis e Sérgio rompem temporariamente - encontrava-se, então, o escritor em Bruxelas, onde tirou, em 1923, a licenciatura de Ciências Pedagógicas, cuja experiência deu origem ao belíssimo pseudopolicial "Uma Aventura Inquietude". Na Bélgica, casa com Pecia Cogan Potnog, uma judaica de origem russa. A ligação é, porém, um estrondoso falhanço.Há momentos da vida de todos nós em que vários acontecimentos se conjugam para tomarmos uma decisão. Foi o que aconteceu com o escritor, que zarpa voluntariamente, em 1935, para os EUA. Pensa lá ficar só alguns meses, que iriam transformar-se em 40 dos seus quase 80 anos de vida - tendo ainda tempo de passar pelo Brasil, entre 1949-50: porém, as terras achadas por Pedro Álvares Cabral não o encantaram. E será em Nova Iorque que o escritor - apesar de conviver com correntes estéticas como o neo-realismo e o presencismo - construirá uma obra de difícil classificação. Será também em Nova Iorque que conhecerá a sua segunda mulher, Camila Pitta Campanella (a viúva vive em Nova Iorque e conta a idade de 104 anos).O direito a sermos diversosSe há palavra que melhor pode definir a obra de José Rodrigues Miguéis, ela é a diversidade - próximo do conceito de heterodoxia de Eduardo Lourenço -, como ele próprio reconheceu: "A melhor maneira se ser igual aos outros não é ser como eles, mas ser diferente: é sermos nós mesmos até ao limite. O que torna os homens iguais é o direito a serem diversos".Na verdade, se houve escritor na sua geração a procurar o diverso - ao lado do monstro que era (e continua a ser) Aquilino Ribeiro e do autodidacta Ferreira de Castro (e Pessoa, claro, que começava a deixar o seu imenso lastro) -, ele é José Rodrigues Miguéis.Quando, em 1958, ganha o Prémio Camilo Castelo Branco, que vence com o seu volume de contos "Léah e Outras Histórias", já há muito que o seu nome está entre as estrelas literárias portuguesas.Mas, como aconteceu com outro nome maior da nossa prosa-poesia-ensaística, como foi Jorge de Sena, que partiu para os EUA, José Rodrigues Miguéis vive longe. Em Portugal - mesmo que os escritores amem o seu país e seja ele a base para as suas ficções, como é o caso de Miguéis -, isso tem um preço muito elevado. O silêncio a que é votado, como no caso do autor de "Sinais de Fogo", deixa-o triste. Os seus livros, como dirá a David Mourão-Ferreira, são vítima não só de silêncio, mas de boicote. Provavelmente até hoje. O historiador João Medina costuma contar, com alguma graça, que quando obriga (perante os olhos atónitos dos seus estudantes), nas suas aulas, a leitura obrigatória de "O Milagre Segundo Salomé", o pior é que, nos dias que correm, não se perceba por que ficam tão espantados. É que, para além de ser um grande romance, é uma viagem única pelos meandros escandalosos da República, a denúncia da hipocrisia da Igreja e dos militares que, entre o corporativismo e os sonhos da libertação, começavam a enojar Miguéis. Não era, com certeza, "Uma Páscoa Feliz," título de um dos seus livros mais emblemáticos.Quando morreu, a 27 de Outubro de 1980, talvez ainda fosse lido. Hoje, quando se discutem os textos que são obrigatórios ou não, ou para os professores sugerirem, José Rodrigues Miguéis só muito raramente é citado. Será a tragédia dos exilados (ou, como antes se dizia, dos estrangeirados)? Uma pergunta a que o colóquio organizado pelas Bibliotecas Municipais de Lisboa poderá começar a tentar responder. "E o silêncio a respeito dos meus livros que normalmente não me apoquenta, agora irrita-me pelo que tem de boicote - e de crassa ignorância."José Rodrigues Miguéis, 1975, em carta a David Mourão-Ferreira$José Saramago, Eduardo Lourenço e Eugénio Lisboa participam no colóquioUma exposição biblio-iconográfica, outra sobre a presença do romancista nos jornais e nas revistas, uma sessão de cinema com a exibição do filme "Saudades para a Dona Genciana", de Eduardo Geada, e um colóquio: é este o conjunto de actividades que - em boa hora - as Bibliotecas Municipais de Lisboa decidiram organizar para celebrar o centenário do nascimento de José Rodrigues Miguéis.Entre as presenças já confirmadas - embora muitas delas ainda não tenham enviado o título da sua comunicação - encontram-se A. H. Oliveira Marques, Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, José George Monteiro, João Medina, José Saramago, Paula Morão, Raul Hestnes Ferreira, Teresa Martins Pereira e Onésimo Teotónio de Almeida (professor e ensaísta da Brown University, EUA, onde se encontra o espólio de José Rodrigues Miguéis), que ajudou a gizar o colóquio.A maior parte dos trabalhos decorre no Padrão dos Descobrimentos, em Belém, enquanto a exposição "Miguéis nos Jornais e Revistas" terá lugar na Hemeroteca Municipal, ao Bairro Alto.

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