Como a arquitectura pode reconciliar judeus e alemães

"A crueldade da memória revela-se na recordação daquilo que foi banido para o esquecimento". A frase, do escritor egípcio Naguib Mahfouz, encerra uma ideia fundamental para compreender as relações, únicas, judaico-alemãs. A memória - coluna fulcral da identidade nacional germânica e semita - dos dois povos cruza-se ao longo de séculos de coexistência e detém-se no drama indizível do Holocausto. Dissecada, discutida ao longo dos últimos 50 anos, interiorizada, recalcada, a inapagável culpa alemã pelos crimes do nazismo encontra nas evocações físicas da memória (e são muitas as que existem na Alemanha) a plataforma para o não esquecimento das gerações futuras e a magnanimidade da reconciliação. A mais expressiva destas "evocações" é o Museu Judaico de Berlim, concebido pelo arquitecto norte-americano Daniel Libeskind. Sendo uma das construções mais audaciosas da "nova Berlim", conta uma história "que não é unidimensional, nem está concluída" nas palavras de Liebeskind. Desde a abertura ao público do museu, em Janeiro de 1999, o edifício "vazio" (sem exposição) acolheu mais de 350 mil visitantes. A partir deste fim-de-semana será "completado" por uma exibição fixa que retrata dois mil anos de presença hebraica na Alemanha.O conceito arquitectónico do museu, na Lindesstrasse, tematiza a complexa matriz de acepções que ligam a história judaica à história alemã. Confrontado com a questão "como construir a destruição?", Libeskind optou por fracturar a estrela de David, dramatizando-a assimetricamente (como já o havia feito há oitenta anos o arquitecto russo El Lissitzky), criar "voids", espaços vazios não como alternativa estética, mas emocional. Arte é tornar o invisível, visível. Desconstruindo alegoricamente a agonia do aniquilamento, Daniel Libeskind cruzou em planos a linha recta, espinha dorsal da construção, com outra em ziguezague arbitrário, muito semelhante à sua escultura, de 1988, "Line of Fire". Aliás, no seu todo o museu é uma impressionante escultura, exterior e interior, com um expoente dramático na torre do Holocausto. "Naturalmente que eu não concebi um museu para apaziguar almas ou que conceda que o tempo cura todas as feridas. O Holocausto não foi uma curta interrupção de som e imagem, mas uma ruptura que tudo mudou, na Alemanha e para os judeus. Mesmo que a história hebraica logicamente vá em frente e se procure um futuro mais luminoso, mesmo com toda a luz ficará sempre uma sombra. Acredito que os visitantes do meu museu conseguem senti-lo", explica Liebeskind em entrevista ao "Die Zeit".A linguagem arquitectónica seguida por Liebeskind coloca grandes dificuldades à apresentação museológica (esta é uma das críticas mais recorrentes feitas ao edifício), uma ordem convencional de mostras é impossível. O facto dos elementos arquitecturais conterem já conteúdos (os "voids", os dois corredores, Eixo do Holocausto e Eixo do Exílio) obriga os organizadores a procurarem respostas que não os ignorem ou os "contrariem." Uma tarefa que não é fácil conforme concede o director do museu Michael Blumenthal, " esta é uma obra arquitectónica única e maravilhosa, mas o carácter simbólico dos labirintos irregulares criados pelo arquitecto, deixa os responsáveis pelas exposições frente a frente com tarefas inconvencionais".Apesar das dificuldades e dos atrasos registados (a mostra era para ter sido inaugurada em Outubro de 2000), a partir de hoje o museu exibirá uma exposição permanente, dividida em ciclos temáticos, que tenta reconstruir a história dos judeus na Alemanha nos últimos dois milénios. O espólio compõe-se de livros e objectos de culto, uma série de documentos históricos e de obras de arte (fotografias e obras gráficas). Além do acervo fixo, o museu contará com um centro de documentação, uma biblioteca e deve organizar mostras rotativas. A cerimónia festiva de abertura, que inclui um concerto da Orquestra Sinfónica de Chicago, conduzida por Daniel Barenboim, e um jantar de gala contará com a presença do presidente da República alemão, Johannes Rau e do chanceler Gerhard Schröder e mais novecentos convidados. O público em geral poderá visitar a exposição a partir dia 12 de Setembro."Este museu tem um significado nacional", frisa num comunicado dirigido à imprensa Julian Nida-Rümelin, ministro da cultura alemão. " O importante papel da cultura judaica e da fé judaica para o desenvolvimento cultural na Alemanha, mas também as irrecuperáveis perdas do tempo das perseguições e do genocídio são aqui visíveis, assim como a especial responsabilidade histórica dos alemães". Anualmente a instituição recebe como financiamento do Estado cerca de 12 milhões de euros. Para Daniel Libeskind o museu é "antes de mais um emblema de esperança, uma prova que também as futuras gerações preservarão a nossa história e a levarão a sério". "Encontrei muita gente, inclusive sobrevivente da Shoah, que me disseram jamais terem tenção de ir a Berlim. Mas quando ouviram a história deste edifício, alguma coisa neles mudou. Alguns estarão presentes na inauguração da exposição. Acredito que muitas pessoas que de outra forma não viriam a Berlim acabarão por vir devido ao museu."

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