Reconstruir a paisagem

Prossegue a iniciativa "2001 Odisseia no Tempo" da galeria Luís Serpa. Desta vez, apresentam-se obras de Miguel Soares e de Mariele Neudecker. Ambos propõem uma perspectiva sideral.

É possível falar ainda da paisagem quando a informação sobre o que nos rodeia impede que nos limitemos ao espaço visível? Ou, noutra linha de pensamento, é possível falar da paisagem quando tudo o que sabemos dela é mediatizado, não transmitido pela experiência directa? Estas duas questões, e outras que lhes estão associadas, decorrem das obras de Mariele Neudecker e Miguel Soares que integram a sétima parte do projecto "2001 Odisseia no Tempo".Desde há quase um ano, a galeria Luís Serpa tem apresentado uma série de exposições submetidas a este tema, tanto no seu espaço próprio como na Sala do Veado, no Museu de História Natural. A passagem do tempo e a consciência deste facto na arte contemporânea é a linha que atravessa todas essas exposições. Ao contrário do que tem acontecido na galeria, onde as individuais têm predominado, na Sala do Veado apresentam-se instalações que conjugam a obra de dois ou três artistas, portugueses e estrangeiros. Assim, durante o mês de Agosto, e enquanto se espera pela reabertura da galeria em Setembro - ainda com a excelente exposição de Manuel Valente Alves-, "Spacejunk", de Miguel Soares, e "Deluge", da alemã Mariele Neudecker, estão patentes na Sala do Veado. Ambos os trabalhos possuem pontos de contacto formais e conceptuais: ambos utilizam a paisagem como pano de fundo para uma reflexão sobre o que é, hoje, ver a arte, num caso; e sobre o que é, hoje, representar a paisagem, noutro. Formalmente, a perspectiva escolhida é comum: uma perspectiva sideral, exterior ao mundo físico em que vivemos.Miguel Soares, que se tem destacado pelo seu trabalho sobre o suporte vídeo - recordo, há alguns anos, a manipulação de jogos de vídeo, revelando ao espectador informação que, normalmente, não lhe seria acessível -, apresenta uma série de imagens fixas, ampliações de imagens digitais, e um filme digitalmente manipulado, tudo sob o título genérico de "Spacejunk". As imagens mostram paisagem; mas trata-se de uma paisagem espacial, como a que é visível em filmes de ficção científica ou em documentários de viagens espaciais. O modelo destas paisagens só é conhecido através de registos que não são os da experiência própria, ou pelo menos para a da grande maioria do público. Do mesmo modo, os elementos que a compõem - segmentos do globo terrestre, espaço intergaláctico, anel de lixo espacial que rodeia a terra - também decorrem de um conhecimento mediatizado, mas virtualmente possível. "Spacejunk", que se refere a esse lixo espacial que circula em anel em volta do planeta terra, é construído, pelo artista, a partir do "download" de dezenas de motivos a partir de páginas da Internet feitas em todo o mundo. A idiossicracia de alguns dos elementos incluídos nesta construção apenas acentua o carácter imaginário da sua construção - mas que, contudo, parte de um dado real que nos é fornecido pelo conhecimento científico.Miguel Soares parte de um modelo existente, mas impossível de observar, para uma construção imaginária, virtual. O facto de utilizar a impressão digital ou o filme animado é aqui irrelevante para uma questão que, afinal, é a da pertinência dos modelos perante as possibilidades da representação. A peça de Mariele Neudecker tem implicações menos circunstanciais. Mas as questões de fundo que aborda são as mesmas.Em "Deluge", há dois filmes de vídeo, projectados paralelamente e mostrando dois globos em rotação. Em cada um desses globos projecta-se uma paisagem romântica de dois autores menores, Francis Danby e Lars Herternig. O espectador tem que se colocar no centro dos ecrãs onde as projecções têm lugar, ou seja, no centro do espaço entre os globos, do espaço sideral.Nesta peça não é a artista que projecta imaginariamente a paisagem que é dada a ver, mas é ela que coloca implicitamente o espectador no lugar em que este a pode reconstruir - porque a projecção sobre uma superfície curva deforma o motivo projectado, e o acto de ver só pode ser conseguido pela mente de quem vê, a partir da invocação de modelos conhecidos. Na verdade, embora o espectador esteja - literalmente - numa posição entre dois mundos, é ainda a sua acção que é exigida, exactamente como o romantismo a definiu. Virtualmente, como na peça de Miguel Soares, o espectador é chamado a reconstruir um mundo perdido, embora o título da peça, que invoca o cataclismo bíblico que destruiu o mundo, nos diga que essa tarefa talvez seja impossível.

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