A novas representações da China

Aos 80 anos, o Partido Comunista Chinês elimina o proletariado e reabilita os capitalistas. No discurso do aniversário, no passado domingo, o Presidente Jiang Zemin dotou o PCC de uma nova doutrina, dita "As três representações". Pretende dar uma resposta aos dilemas do regime perante os desafios do novo século e da nova China, aquela que aspira a tornar-se uma potência global dentro de duas ou três décadas. E fê-lo, precisamente, poucos dias antes de uma data decisiva para os próximos anos no país: organizará Pequim os Jogos Olímpicos de 2008?1. Mao Zedong fez alianças tácticas com a antiga burguesia. Agora trata-se de outra coisa e de uma burguesia outra, saída das reformas económicas e de um vertiginoso processo de crescimento. É também algo mais do que a política de "porta aberta" de Deng Xiaoping. Empresários, directores de empresas multinacionais, banqueiros e comerciantes ricos, técnicos e intelectuais, enfim, os expoentes das "formas de produção avançadas", passam a fazer parte da própria base social do partido. Haverá já mais de cem mil empresários dentro do PCC (com 64 milhões de membros), na maioria aderentes antes de se tornarem homens de negócios. O que muda é o estatuto. Nada será como dantes em termos de classe: "Não podemos olhar de forma simplista para a riqueza das pessoas e determinar se são politicamente avançadas ou retrógradas", disse Jiang.Na nova doutrina, o PCC deve passar a "representar" três forças: as "forças produtivas avançadas", a "cultura avançada" e os "interesses da maioria do povo chinês". Classe operária e campesinato pobre dissolvem-se na "maioria do povo". Com eles vai a ditadura do proletariado.Não se interprete a liquidação da teoria da luta de classes como o prenúncio de democratização e pluralismo político. O próprio Jiang Zemin se encarregou de afastar leituras precipitadas: "Devemos resistir com todas as nossas forças à influência dos sistemas pluripartidários do Ocidente." E frisou a necessidade de uma "direcção forte do partido", sem a qual o país cairia num "caos abissal". Trata-se antes de uma redefinição da natureza do partido, em vésperas da passagem do testemunho à geração seguinte, prevista para o Outono de 2002. Uma abertura do regime não acontecerá aliás sem resistências internas. E aquela data será uma boa ocasião par medir forças.2. Em Pequim, dizem os correspondentes, nunca se falou tanto em "mudança política" desde o fim dos anos 80.As leituras do fenómeno são controversas. Wu Jiangxiang, antigo conselheiro do reformador Zhao Ziyang e actualmente investigador em Harvard, diz ao "Nouvel Observateur": "Jiang Zemin não é Brejnev. Compreendeu que tinha de alargar a base do partido. As suas 'três representações' são quase um programa social-democrata."Wu Guoguang, outro colaborador de Zhao Ziyang, discorda. "Eles querem a quadratura do círculo: uma social-democracia sem oposição, uma democracia sem parlamento (...) O Partido não desencadeará a democratização. A mudança, a acontecer, será devida a causas exteriores ao Partido."O historiador Chen Yan diz à mesma revista: "É novo, eles tomaram de repente a consciência de que o Partido pode morrer. Já não se perguntam como o podem evitar. O Partido vai morrer. A questão é saber quando e de que maneira." O Partido Comunista Chinês está confrontado - e pensando apenas no plano interno - com a gestão de uma mudança social de enorme envergadura. A nova sociedade escapa em larga medida ao controlo do partido. Acentua-se o fosso entre a cidade e o campo. A migração para as cidades, medida em dezenas e dezenas de milhões, está a tornar-se torrencial.Um dos grandes fantasmas do império sempre foi as migrações, causa de desordem. Por outro lado, a corrupção atinge níveis alarmantes. A agitação social é endémica. Os próprios relatórios internos do partido dão conta de motins permanentes. Enfim, com a morte da ideologia comunista, o partido perde o poder espiritual. Um dos temas que Jiang retomou no seu discurso foi o da "civilização espiritual", em contraponto às ameaças de "decadência moral". É também aqui que se enquadra a segunda representação, a da "cultura avançada". Segundo Frédéric Bobin, correspondente do "Monde" em Pequim, esta referência "traduz a vontade de o Estado-Partido chinês elaborar uma nova moral para combater o vazio deixado pelo desmoronamento do messianismo maoista". O êxito do movimento Falungong reforçou o temor do partido. Não por ser uma ameaça directa, mas porque ocupa um espaço deixado vazio pelo partido.3. E aqui entra Confúcio. Não necessariamente o que pensou o filósofo político que viveu há 25 séculos, mas o que na China se entende por confucionismo. Num discurso de Fevereiro passado, Jiang Zemin falou muito no "reino da virtude", destinado a completar o "reino pela lei". Para alguns analistas, o confuciano "reino da virtude" tem a vantagem de poder substituir o Estado de Direito que uma minoria da elite reivindica desde 1989. Anota a sinóloga francesa Anne Cheng que, com o abandono do comunismo revolucionário de Mao, o confucionismo foi considerado nos anos 80 "o motor central da modernização". Desde o fim dos anos 70 que o confucionismo e os "valores asiáticos" são utilizados na Ásia de influência chinesa como meio de combater a ideologia ocidental entre a juventude.O melhor teorizador desta estratégia foi Lee Kwan Yew, antigo Presidente de Singapura. Por outro lado, estudiosos ocidentais tentaram ligar o surto económico do Sueste asiático - aliando liberalismo económico e autoritarismo político - aos valores confucianos, tal como Max Weber associou o surto capitalista na Europa ao espírito protestante. Teses que hoje se encontram postas em causa.Prossegue Cheng: "Se o confucionismo não tem na realidade grande coisa a ver com o desenvolvimento económico, ele serve os fins dos dirigentes autoritários de Singapura, Pequim ou Seul, que, confrontados com uma aceleração súbita do desenvolvimento económico que as estruturas políticas não conseguem acompanhar, acham cómodo retomarem os valores confucianos, garantes de estabilidade, de disciplina e de ordem social, por oposição a um Ocidente cujo declínio se explicaria pelo seu individualismo e hedonismo. [A China] não pode fazer valer o seu direito a uma universalidade distinta da do Ocidente senão em termos culturalistas, brandindo a bandeira dos 'valores asiáticos' (entenda-se, 'confucianos') perante os Direitos do Homem de que os ocidentais se fizeram campeões." 4. Deng Xiaoping encarava a necessidade de fazer acompanhar a reforma económica por uma reforma política. Mas conhecia os limites do sistema, esperimentou Tiananmen e achou que ela era (sempre) precoce. O exemplo do desabamento da URSS funciona como o guião do que não fazer.Até agora, o regime soube sobreviver, invertendo a agenda de Gorbatchov: reformas económicas aceleradas sob autoritarismo político. O PCC sonha tornar-se, como o agora caído PRI mexicano, num partido que passa de revolucionário a "institucional", que se confunde com o Estado, sem ideologia precisa a não ser um vincado nacionalismo, de modo a assegurar o comando da sociedade durante décadas a fio. Enfim, um regresso do PCC ao Kuomintang?A China é tradicionalmente um país de grandes desordens. Mas todos os viajantes anotam que, a par do fervilhar social e do permanente protesto, há na população um profundo desejo de ordem e estabilidade. Este sentimento é hoje o maior aliado do poder instalado. Morta a revolução, dissolvido o proletariado, onde encontrar a nova legitimidade para o seu "mandato celeste"? É a questão que vai obcecar o poder de Pequim nos próximos anos.

Sugerir correcção