De marceneiro a campeão

Aos 42 anos, Jaime Pacheco conduziu o Boavista ao seu primeiro título português de futebol e fixou outro marco dourado numa carreira cheia de êxitos. E, ainda há 25 anos, quando ele não era ninguém, um homem sentado ao seu lado numa bancada do Bessa, lhe garantia que ia ser famoso. Aparecer até na televisão. Vamos começar por aqui...

Corre o ano de 1976 e o cenário é o Estádio do Bessa. Um homem de quarenta anos está sentado nas bancadas, a conversar com um rapaz de 18. O primeiro chama-se Júlio Teixeira e é treinador de uma equipa da III Divisão, o Aliados do Lordelo, de Paredes. O miúdo é um dos seus jogadores, que tinha acabado de ser recrutado nas camadas jovens do Rebordosa. Chama-se Jaime Pacheco. Tinham chegado ao Porto nesse dia, um sábado, mas só iam jogar no domingo, e aproveitavam, como era hábito, para assistir a um desafio no Bessa, que conquistara na época anterior o seu primeiro segundo lugar no campeonato. "Um dia vais jogar aqui e aparecer na televisão", atirou Teixeira ao seu pupilo. Jaime não era de replicar, mas, lá por dentro, pensou: "Este gajo o que quer é que eu corra mais". Não podia imaginar que estava a ouvir alguém que talvez só pecasse pela excessiva prudência dos seus augúrios. Mas agora que deu o primeiro título de campeões nacionais aos axadrezados, pensando no longo trajecto que percorreu, desde os jogos de rua, aos seis anos, até ao momento em que foi levado em ombros pelos boavisteiros, Jaime Pacheco não pôde impedir-se de recordar a profecia desse homem que, há um quarto de século, foi capaz de convencer o seu pai a deixar o filho dedicar-se ao futebol. Desde que não descurasse a marcenaria.Jaime Pacheco não só jogou no Bessa, e apareceu na televisão, como se sagrou campeão nacional e europeu de clubes, além de vestir por várias vezes a camisola da selecção nacional. Mas fez mais. Aos 42 anos, já como treinador, conseguiu um feito histórico: conduziu o Boavista ao título de campeão, pondo fim a um reinado de 55 anos, tripartido entre o Benfica, Sporting e FC Porto. Foi o culminar de um percurso de sucesso, que começou a ser trilhado nas estreitas ruas de terra batida de Lordelo, Paredes, nos arredores do Porto, e que passou passou, entre outros, pelo Rebordosa Atlético Clube, Aliados do Lordelo, FC Porto ou Sporting, até chegar estádio do Bessa. Uma tal façanha não estava decerto nas expectativas mais optimistas do seu pai, Mário Pacheco, falecido há seis anos, e também jogador de futebol numa equipa que dava pelo nome um tanto insólito de Arranca Tocos. Jaime Pacheco teve a quem sair na persistência. Já o pai era um defesa-central estimado e, tendo sofrido uma arreliadora lesão preferiu (e conseguiu) passar a guarda-redes do que abandonar a modalidade. Mas nunca permitiu que a bola o levasse a desleixar o seu ofício. Não admira, por isso, que Júlio Teixeira só a custo o tivesse convencido a deixar o seu Jaime, na altura com 18 anos, perdesse algumas horas de trabalho na oficina de marcenaria para treinar mais dois bocados à tarde. Este homem austero, mas generoso, e que soube transmitir ao filho uma devoção extrema pelo trabalho, não terá medido bem o alcance do peremptório "sim" que ouviu do treinador do Aliados, quando quis saber se o "miúdo" poderia dar alguma coisa na bola. O jovem, na altura simpatizante do Benfica ("por causa do Eusébio", explica a mãe), mas proveniente de uma família maioritariamente sportinguista, a começar pelo seu irmão mais velho, Manuel Pacheco - também ele defesa central do clube da terra - é hoje visto em Lordelo com grande admiração, com direito a dar nome a uma rua e tudo. Em boa parte porque a fama não lhe subiu à cabeça. Ele próprio garante que jamais renegará as suas origens: uma família modesta, constituída por mais dois irmãos e uma irmã, que vivia do rendimento da oficina de marcenaria do pai, por duas vezes emigrado no Brasil. Nem à avassaladora paixão por jogar futebol, maior que a de treinar. "O que gosto é de jogar", diz ainda hoje Pacheco. "Ando sempre a correr com os meus jogadores. Não é para parecer melhor que os outros treinadores, que estão quietos, mas apenas porque gosto, gosto". Esta tentação pela bola, o prazer de a ver saltar, manifestou-se muito cedo. Com seis ou sete anos, já era o mais requisitado quando se tratava de formar as duas equipas que, descalças, disputavam fervorosos desafios de futebol. "Era sempre o primeiro a ser escolhido, porque mesmo pequenito era irreverente e jogava bem", recorda Jorge Guerra, de 48 anos, amigo e companheiro de Jaime naqueles duelos. Como roubar-lhe a bola não se afigurava tarefa fácil, os adversários recorriam muitas vezes à sua maior capacidade física para o colocar fora de jogo. Quando nem isso resultava, porque o Jaime era "teimoso", recorriam a um argumento demolidor: um dos adversários corria apressadamente a avisar Mário Pacheco de que o filho estava a jogar à bola. Era fatal. O pai não era homem de perder tempo quando havia trabalho para fazer. E Jaime, mal ouvia os inconfundíveis assobios do seu progenitor, abandonava tudo e corria para a oficina. Um desgosto. Gostava tanto da bola que chegou a detestar o sol. Não parece haver ligação, mas há. É que, nos dias de calor mais intenso, "os amigos não queriam jogar enquanto não arrefecesse".Não era só no futebol que as faculdades de Jaime eram apreciadas. Aos 11 anos, revelou-se um perito na difícil arte de folhear os móveis, acabando por substituir o irmão mais velho, Manuel Pacheco, forçado a partir para o serviço militar no ultramar. Mas este talento também se mostrou cedo. Aos dois anos, quando já passava boa parte do seu tempo na oficina do pai, pregando pregos. Andava sempre com um martelo na mão. Um hábito que acabou por ter consequências funestas. Um dia, estando a mãe doente na cama, apareceu o pequenito Jaime acompanhado da sua inseparável ferramenta de trabalho. À falta de um prego, resolveu martelar a mãe. "Nunca mais me esquece, abriu-me a cabeça. Tinha uma energia aquele garoto...", confessa Maria Alice, de 71 anos.Outra reconhecida faceta do agora treinador é a teimosia. É muito difícil demovê-lo quando sabe que tem razão. Nem o medo que tinha ao pai era suficiente para o fazer abdicar das suas convicções. Conta Maria Alice: "Um dia pediu-lhe para o deixar ir fazer um trabalho a Paços de Ferreira, para depois aproveitar e dar um salto à festa de São Brás. Ao meio-dia tinha o serviço pronto. O pai, porém, resolveu arranjar-lhe mais trabalho. Ele disse que se não ia à festa também não trabalhava. E ficou a tarde toda sentado sem fazer nada". Talvez por isso, ou em boa parte pela sua generosidade, o pai não lhe retirou a benesse de jogar futebol. Deixou-o ir para as camadas jovens do Rebordosa. Foi o primeiro passo para Jaime mostrar as suas qualidades, acabando por ser recomendado pelo seu irmão mais velho ao treinador do Aliados. "Um dia disse lá à malta toda: 'Vamos ver jogar o irmão do Pacheco, a ver se é outro maçaneta como ele", conta Júlio Teixeira, que acabou por ficar impressionado, recomendando de imediato a sua contratação. Com 18 anos, impôs-se rapidamente na primeira equipa, passando a ser conhecido como Jaiminho. O irmão Manuel recebia o nome de Pachecão, para evitar confusões. Quando chegou, recorda Teixeira, era franzino, "com umas pernitas que pareciam os meus braços". Mas "trabalhou tanto que ganhou rapidamente massa muscular; era um miúdo que não admitia que ninguém trabalhasse mais do que ele, era divertido e daqueles que comem a bola se for preciso". O talento valeu-lhe quatro contos por mês. Uma fortuna que o deixou boquiaberto. "Ó senhor Júlio, eles vão dar-me esse dinheiro todo?". O treinador confirmou: "Vão homem, têm de dar". O Aliados estava na III Divisão e acabou por se sagrar campeão. Nessa época, porém, a coroa de glória de "Jaiminho" foi o golo que marcou e afastou o então primodivisionário Leixões da Taça de Portugal. A importância de Jaime na equipa era tanta que o treinador resolveu pedir a Mário Pacheco para permitir que o filho treinasse todos os dias e não apenas três vezes por semana. Na temporada seguinte, a formação, constituída novamente por jogadores como Joaquim Teixeira, ex-adjunto de António Oliveira no FC Porto e na selecção nacional, ou Melo, um guarda-redes que se tinha sagrado campeão europeu no Benfica, quase consegue a subida à I Divisão, perdendo para o Famalicão e, na Liguilha, para o AC Viseu. Pacheco, apesar da sua juventude (19 anos), era já uma das estrelas no meio-campo, embora fosse utilizado muitas das vezes como defesa esquerdo, o que não lhe agradava. "Preferia o meio-campo, onde a bola estava mais tempo", confessa Jaime Pacheco. E o treinador lembra: "Não dizia nada, nem deixava de trabalhar, mas amuava. Tive de lhe explicar que se o colocava a ele naquela posição, era porque confiava mais nele do que nos defesas esquerdos que tinha no banco". Pelos vistos, o "Jaiminho" aprendeu, e agora garante que não gosta de jogadores que amuem. A época seguinte, no Aliados, foi confusa e Jaime Pacheco, com 21 anos, acabou por sair. Esteve com um pé no Rio Ave, mas o treinador Pedro Gomes preferiu outro. Também não chegou a acordo com o Paços de Ferreira, a Académica - "Queriam que fosse estudar..."- e o Beira Mar. Com o clube de Aveiro até estava tudo acertado, mas o treinador, Fernando Cabrita, fez questão de conhecer primeiro o jogador. Um desejo legítimo, mas que deitou tudo a perder. "Pensei para comigo: não tenho pinta de jogador e, se ele me vê, não me vai querer. Por isso não apareci", recorda Jaime Pacheco. É nessa altura que surge o interesse do FC Porto. Júlio Teixeira já o tinha recomendado várias vezes ao então adjunto de Pedroto, o falecido António Morais. "Vais ver que entra naquele meio-campo e nunca mais de lá sai". Nas Antas passou a ganhar 60 contos por mês. Mas nem o facto de jogar num clube de grande dimensão o levou a abandonar o trabalho na oficina do pai. Esta fase acaba por se revelar complicada para Jaime Pacheco, que vivia a cerca de 40 quilómetros do Porto e não conhecia outros meios de transporte que não fossem a motorizada ou o autocarro da firma Pacense. "O que passei! Muitas vezes no regresso perdia o autocarro e tinha de apanhar o '94' até Valongo e depois seguir à boleia. Chegava a casa tardíssimo e ainda tinha de ir trabalhar". Só mais tarde, com a ajuda de um empréstimo de 100 contos do pai, é que consegue comprar um Fiat novo. É por essa altura que aprende uma lição que lhe fica para o futuro, vinda precisamente daquele que hoje considera o seu mestre. É Octávio Machado, então seu colega na equipa, que conta o episódio: "Um dia estava o senhor Pedroto à porta do balneário a fumar o seu cigarrinho enquanto os jogadores iam entrando. O Jaime chegou atrasado. E perguntou-lhe: 'Para onde vens?'. 'Venho treinar', respondeu Pacheco. 'O teu treino está feito; podes ir embora'. E ele foi mesmo". Nessa fase inicial de Pacheco no FC Porto, Octávio assumiu-se como uma espécie de protector, tendo mesmo chegado a acolher o colega em sua casa durante o chamado "Verão Quente das Antas". Em Fevereiro de 1983 estreia-se na selecção nacional, onde actuaria como titular sempre que foi convocado. Fez parte da equipa que conquistou o terceiro lugar no Europeu de França, em 1984, mas o seu percurso internacional acabou por ser prejudicado pelos problemas de Saltillo, no Mundial do México de 86. No rescaldo do conflito, alguns jogadores foram banidos da formação das quinas, entre eles Jaime Pacheco, que só voltou à selecção já na época de 1990 e apenas por uma vez.A nível de clubes, o seu primeiro troféu é uma Taça de Portugal, conquistada na época de 83/84, ao serviço do FC Porto. E recebe uma proposta demasiado tentadora do Sporting. João Rocha oferece-lhe 1300 contos mensais, bem mais do que os 400 que ganhava nas Antas. Em apenas oito anos, multiplicara por 325 esse primeiro ordenado do Aliados do Lordelo, que então lhe parecera principesco. Números que o obrigaram a pensar duas vezes, mesmo sendo ele alguém que nunca considerou o dinheiro a coisa mais importante da vida. Ainda chega a apresentar uma contra-proposta de mil contos por mês a Pinto da Costa para não sair. "Ele agarra-se muito às pessoas, é sério e nunca muda só por dinheiro, mas aquilo era demasiado", explica a mãe que, nesse Verão, chegou a odiar o telefone que "não parava de tocar, porque, depois, também o queriam no FC Porto". Mas a recusa do presidente portista leva-o a assinar pelo Sporting.O dinheiro que vai ganhar permite-lhe finalmente dar largas a uma das suas paixões: os carros e as motos. Compra um Porsche. Quase deixa a mãe louca, quando lhe aparece de surpresa em casa com a sua nova máquina. Depois surge com uma moto de grande cilindrada e, mais tarde, já quando estava no Setúbal, compra um Ferrari. "Gostava destas coisas e até tivemos de lhe fazer uma garagem nova só para os carros dele", conta a mãe, que foi durante largo tempo a administradora das finanças do filho. "Nem sabia o que tinha, às vezes pensava que tinha pouco e tinha milhares. Fui sempre eu que tratei disso, até há uns anos atrás". No Sporting não conheceu o êxito dos títulos, embora as suas exibições conquistassem os adeptos leoninos. E na temporada de 1986/87 regressa ao FC Porto para conquistar a Taça dos Campeões Europeus. A Taça Intercontinental, o Campeonato e a Taça de Portugal chegam na época seguinte. Porém, acaba por ser afastado do plantel por Artur Jorge, na célebre "limpeza de balneário" do final da temporada de 88/89. Acaba por assinar por duas épocas com o Setúbal, onde conhece a sua esposa, Carla Alexandra, com quem casou e de quem teve uma filha (Inês, nove anos) e um filho (Filipe, quatro anos). E dá início um trajecto de vários anos por equipas de menor dimensão. Como jogador ou treinador ou ainda acumulando ambas as funções, passou pelo Paços de Ferreira, Braga, Rio Ave, Paredes e União de Lamas. É no Lamas que vai fazer tremer as Antas, quando fica a um passo - ou mais precisamente, a um penalti falhado já em período de descontos - de eliminar os portistas da Taça de Portugal da época de 1995/1996. O feito despertou a atenção do presidente do Guimarães que, ainda nessa temporada, lhe entrega o comando da equipa. Acabou por ser despedido por Pimenta Machado na época de 97/98, quando a equipa estava em segundo lugar. João Loureiro, que tinha acabado de despedir Mário Reis, não perde a oportunidade de o trazer para o Bessa. Foi a maneira de ambos deitarem para trás das costas o desentendimento público que tinham tido a propósito de um Guimarães-Boavista. E "o pardalito dos telhados", como Jaime Pacheco então designou o presidente do Boavista, acabou por se tornar no aliado perfeito na caminhada para o título.

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