Barbara Strozzi: a composição no feminino

Foi uma das raras compositoras do barroco. Admirada pelos seus contemporâneos, chegou a ver a maior parte da sua obra publicada. Um excelente disco do Orlando di Lasso Ensemble revela-nos o seu Opus 1, uma fascinante colecção de madrigais.

As mulheres que se conseguiram impor como compositoras ao longo da história da música quase se contam pelos dedos. Mesmo no século XX, após a emancipação e depois do desmoronar de muitas barreiras e preconceitos, elas representam uma percentagem reduzida em relação ao universo masculino. No passado, fazer carreira como criadora era quase um caso heróico, mas a verdade é que existem muito mais exemplos do que se pensa. Uma simples pesquisa na Net revela-nos dezenas de nomes esquecidos desde a longínqua Idade Média - a descoberta de Hildegard von Bingen causou um verdadeiro furor - aos nossos dias. A excelente revista de música antiga "Goldberg" inclui também, desde o primeiro número, uma rubrica intitulada "Mulheres Barrocas", que nos tem dado a conhecer várias personalidades.O período barroco é, de facto, um dos mais fascinantes no que diz respeito às vozes criativas no feminino, contando com compositoras de grande mérito como a francesa Elisabeth Jacquet de la Guerre ou as italianas Francesca Caccini e Barbara Strozzi, para citar apenas os exemplos mais evidentes. Entre elas, a veneziana Barbara Strozzi (1619-1677) é a que possui uma obra de maiores dimensões e uma das mais contempladas pelo disco. Um notável registo do seu 1º Livro de Madrigais (1644), a cargo do Orlando di Lasso Ensemble, surgiu há pouco na etiqueta Thorofon, vindo complementar a nossa visão do seu universo.Numa época em que muitos homens não conseguiam sequer publicar as suas partituras, Strozzi conseguiu ver editadas em vida mais de 100 peças. A sua música, de uma apreciável qualidade, acabaria por ser esquecida nos séculos posteriores, mas era conhecida e respeitada pelos seus contemporâneos. Qual o segredo do seu sucesso? Provavelmente a protecção e o incentivo do poeta e libretista Giulio Strozzi, uma figura muito respeitada em Veneza, de quem era filha ilegítima - a mãe era Isabella Garzoni, uma antiga empregada da casa. Apesar do nome Strozzi não constar do seu registo baptismal, onde aparece Barbara Valle, Giulio Strozzi referia-se a ela como "figliola elettiva", ou seja adoptiva. Não só a acolheu na sua casa como encorajou a sua carreira musical como cantora e compositora. Barbara cantava informalmente para os músicos e intelectuais que frequentavam a casa do pai, onde decorriam as reuniões da Academia degli Unisoni e em 1635 é identificada como "virtuosissima cantatrice" na dedicatória de um volume de canções de Nicolo Fontei. Giulio Strozzi proporcionou-lhe também a possibilidade de estudar com Francesco Cavalli, um dos mais ilustres compositores da época. Investigações recentes provam que Barbara era considerada como uma respeitável cortesã, que vivia com prosperidade e foi mãe solteira de pelo menos quatro crianças.Em 1644 Barbara Strozzi publica o seu primeiro Livro de Madrigais, sobre textos do seu pai. A edição de um Opus 1 consagrado ao sofisticado género do madrigal marcava o final dos estudos de qualquer compositor que ambicionasse fazer carreira. Foi esta particularidade que deu origem à colecção "Opus 1 em Veneza" que o Ensemble Orlando di Lasso tem vindo a realizar na Thorofon, onde se inclui o presente álbum duplo e discos tão magníficos como os Madrigais Op.1, de Schütz, "Diapason d'Or" de 1999. As publicações posteriores de Strozzi, que se estendem até ao opus 7 (1659) incluem mais cinco volumes com cantatas e árias, mas existem bastantes mais obras em manuscritos e dispersas em antologias.Embora tenham sido escritas em meados do século XVII, as composições de Strozzi refletem as técnicas da monodia acompanhada dos inícios do Barroco, o que não quer dizer que fiquem atrás de outras obras da mesma época em estilo e qualidade. Os madrigais do seu primeiro livro apresentam uma grande variedade de técnicas, desde as texturas mais convencionais a quatro e cinco vozes e ao uso da imitação aos duetos de cariz mais operático ou declamatório, passando pelo recurso ao "stile concitato" introduzido por Monteverdi e a ocasional introdução de partes instrumentais obrigadas, além do baixo contínuo. Como é típico do madrigal, há uma sensível atenção ao texto e uma enorme gama de temáticas, efeitos e "affetti": a sensualidade e o virtuosismo vocal no "Canto di bella boca" ou em "L'Amante Timido eccitato", a transitoriedade do prazer no magnífico "L'Affetto Humano" ou o sentido de humor no trio "Vecchio Amante chi rende la piazza". As vozes exuberantes e a desenvoltura técnica do Orlando di Lasso Ensemble, que tem dedicado grande parte da sua actividade aos madrigais tardios, unem-se a um conjunto instrumental de grande variedade tímbrica, seleccionado em função do carácter de cada peça, para nos oferecer uma interpretação de grande adequação estilística. Não terá talvez a fogosidade típica dos intérpretes italianos, mas prima pelas suas inteligentes subtilezas e por uma eloquente musicalidade.

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