Torne-se perito

Toda a poesia

A Porto 2001 e a Assírio & Alvim lançam hoje na Biblioteca Municipal Almeida Garrett o livro "Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro", uma escolha da melhor poesia de todos os tempos, desde as confiantes cosmogonias africanas até às palavras contemporâneas dos que nasceram depois de Auschwitz. A ideia partiu de Paulo Cunha e Silva, responsável pelo pelouro do pensamento e literatura na Porto 2001, e foi executada, em pouco mais de um ano, por uma vasta equipa coordenada pelo editor da Assírio & Alvim, Hermínio Monteiro. Um prazo assustadoramente curto, se tivermos em conta que estamos perante aquela que é, com toda a probabilidade, a mais abrangente antologia de poesia alguma vez publicada no planeta.O que este volume condensa nas suas quase duas mil páginas é uma história universal das emoções humanas. Porque, como escreve Hermínio num belo texto de introdução, "nada existe que a poesia não tenha experimentado, desde o mais recôndito silêncio do deserto, ao fragor das batalhas mais sangrentas, da mais humilde das intimidades, ao luxo sinuoso do palácio". A primeira singularidade desta "Rosa do Mundo", por contraste com as várias colectâneas de "tesouros" da poesia universal já publicadas, em Portugal e no estrangeiro, é o facto de reservar cerca de um terço do seu espaço disponível a essa literatura sem autor conhecido, e em muitos casos de realização colectiva, que se estende das cosmogonias de povos de todos os continentes, passando pelos livros sagrados das mais diversas culturas, até às baladas populares medievais de recolha oral. Ninguém sabe onde nasceu a poesia. Mas não há dúvida de que se espalhou, desde o passado mais remoto, por todos os cantos da terra. Atestam-no as centenas de poemas evocativos e mágicos recolhidos neste livro, criados por tribos tão distantes entre si como os fulani do Mali e os apaches norte-americanos, os tupis da Amazónia e os esquimós do Árctico, os maoris da Nova Zelândia e os mandeus do Irão. Largamente representadas nesta "Rosa do Mundo" estão também as literaturas das civilizações pré-clássicas e clássicas, através de excertos do "Rig Veda", do "Bhagavad-Gita" e de muitos outros livros antigos da Índia, da epopeia suméria de "Gilgamesh", do "Livro dos Mortos do Antigo Egipto", do "Ciclo Nauatle" mexicano, dos muitos livros que compõem a "Bíblia", dos evangelhos gnósticos, do "Alcorão", do "Livro dos Cantares" chinês ou, ainda, das grandes obras atribuídas a Homero. Dezenas de poemas ilustram ainda o génio literário da antiguidade greco-latina, da "Teogonia" de Hesíodo às "Metamorfoses" de Ovídio, e não são menos generosas as escolhas de textos das culturas azteca, maia, celta e árabe, ou dos cantares dos trovadores provençais e galaico-portugueses. Estes últimos foram seleccionados por Teresa Amado, ao contrário dos restantes poemas portugueses, cuja escolha coube ao próprio Hermínio Monteiro. Para garantir a maior diversidade possível, e também para evitar qualquer tipo de hierarquizações entre os autores incluídos, o editor da Assírio & Alvim optou por seguir o critério de incluir apenas um poema de cada poeta. Abriu uma só excepção para Fernando Pessoa, considerando Caeiro, Reis e Campos como "perfeitas identidades poéticas". O primeiro passo na organização do livro foi o de procurar a pessoa certa para assumir a selecção de cada uma das literaturas mais relevantes. O que levou o seu tempo, de modo que o trabalho a sério só arrancou, segundo afirma o editor, em Fevereiro ou Março do ano passado. Hermínio deu inteira autonomia aos seus vinte e tal colaboradores principais, mas fez-lhes algumas recomendações. A mais importante era a de que os poemas deveriam ser escolhidos pela sua qualidade, evitando-se a tentação de incluir textos mais ou menos anódinos só porque estavam editados em português. Mas se já existia uma boa tradução de um bom poema, havia que a aproveitar. E um dos méritos deste livro é justamente o de ressuscitar algumas versões exemplares hoje muito esquecidas, assinadas por escritores como Bocage, Marquesa de Alorna, Antero de Quental, ou mesmo o poeta setecentista António Ribeiro dos Santos, representado com a tradução de uma ode anacreôntica. Um dos riscos da inevitável dispersão de responsabilidades em matéria de escolha de poemas era o de dificilmente se poder chegar a um critério uniforme. Houve quem entregasse textos a mais, obrigando a algumas supressões, mas houve também quem levasse a exigência a limites proventura exagerados. Hermínio Monteiro teve de forçar a inclusão de Breton, que Filipe Jarro, o seleccionador dos autores franceses, não considerava indispensável. E, ainda assim, ficaram de fora poetas tão reputados como Saint-John Perse ou Tzara. A coordenação de uma equipa tão vasta de colaboradores deu naturalmente origem a uma ou outra confusão. Dever-se-á, por exemplo, a um equívoco o facto de o livro não incluir poetas de língua alemã vivos. Barrento garante que tinha indicação de se cingir aos autores já desaparecidos. Na Assírio & Alvim ninguém se lembra de alguma vez ter estado em vigor esse critério, e apenas se recordam de que, numa primeira fase, o limite cronológico ia até poetas nascidos em 1940, uma fronteira depois alargada até 1945. Outra modificação que a obra sofreu quando o trabalho estava já em curso foi a do seu próprio título. Cunha e Silva tinha na cabeça "2001 Poemas para o Futuro", que aludia ao ano da capital da cultura e, simultaneamente, ao lema que esta adoptara: "Pontes para o futuro". A opção por uma antologia de poesia universal decorrera da sua convicção de que esta era a forma "mais rica, mais versátil e mais condensada" de mostrar "o futuro através dos tempos", já que, defende, "o passado foi sempre um violento desejo de futuro". Hermínio é que nunca se sentiu muito satisfeito com este título, que lhe parecia "demasiado lacónico e pouco poético". Andava a remoer nisto quando lhe surgiu "espontaneamente e por pura intuição" a expressão "Rosa do Mundo". Não se lembrou, então, de que Eugénio de Andrade intitulara assim um poema, o que se desculpa, já que o próprio poeta, quando o informaram da nova designação, também não se lembrou. E só mais tarde vieram ambos a constatar que, afinal, já o poeta irlandês Yeats escrevera um poema com este mesmo título, que abre com o verso "Quem sonhou que a beleza passa como um sonho?". Paulo Cunha e Silva e Hermínio Monteiro sonharam preservá-la. Nas páginas deste livro.

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