Apocalipse novo

Vinte e dois anos depois de "Apocalypse Now", Francis Coppola venceu de novo em Cannes com "Apocalypse Now". Vinte e dois anos depois de ter entregue ao festival uma versão "work in progress" do filme - na esperança de calar as páginas de acidez que destilava a imprensa americana ao vaticinar a derrota mesmo antes de ver o filme - e de ter saído do certame com uma Palma de Ouro, Coppola ouviu ontem elogios do género "Obrigado por ter transformado uma obra-prima numa obra-prima maior" no final da apresentação da "versão definitiva" (para ele, Francis) - mais cerca de 50 minutos, numa duração total de três horas e 23 minutos."Cannes salvou" "Apocalypse Now", em 1979, reconheceu Coppola - o festival, aliás, foi sempre afectuoso para ele, quer na primeira vez que o recebeu, com "You're a Big Boy Now", em 67, quer com "The Conversation", Palma de Ouro em 74. Hoje, "Apocalypse Now", que foi um sucesso de bilheteira, já não é uma questão de vida ou de morte, já não precisa de ser salvo. A questão, até, era a de saber se, com esta inflacção de "director's cut" que são apenas estratégias de "marketing", o filme não seria atraiçoado. O resultado: não sendo propriamente um filme diferente, é um filme novo, como se o tempo tivesse permitido que ele crescesse e pudesse assim vir ao de cima (as novas sequências) aquilo que, estando já lá dentro, não pôde ser totalmente explicitado. É isto o que conta Coppola: não houve tempo, nem distância, para contornar a pressão; tinha nas mãos, há 22 anos, quatro horas e meia de filme e a consciência de que (em 1979) o público não aguentaria muito mais do que duas horas. Por outro lado, "Apocalypse Now" já tinha suficientes "manobras de diversão" em relação ao género "filme de guerra". Era preciso cortar, e como não era possível fragmentar, foram tiradas sequências completas. Foi uma versão, segundo ele, defensiva.Hoje, diz, "as audiências estão mais sofisticadas"- e, assume: 'Apocalypse Now' é hoje um filme mais convencional do que em 1979". Por isso - inicialmente a pensar no DVD, "o amigo do espectador, mas também o amigo do realizador" - Francis foi buscar Walter Murch, o montador de imagem e de som, e os dois regressaram ao filme. É curioso, confessa Murch: ao olhar para as sequências que tinham sido deixadas de fora, ele não sentiu que se tratava de um regresso ao passado, "sentia que Francis estava naquele momento a filmar 'Apocalypse Now' e as imagens iam chegando, como se fossem 'rushes'". "Apocalypse Now" não vai ficar restrito ao DVD. Antes disso, vai iniciar uma carreira comercial, a partir deste momento em França e em Agosto nos EUA, precisamente 22 anos depois da estreia da versão original.Começa a ser "novo" a partir de Kilgore/Robert Duvall e o seu "I love the smell of napalm in the morning". Prolonga-se mais a personagem, e a sua grandeza tragico-cómica. Willard/Sheen e os companheiros de barco fogem com a prancha de surf, Kilgore ainda os sobrevoa. Há mais pormenores da relação de Willard com os homens do seu barco, desenvolvendo a cumplicidade entre eles. Nada de muito essencial, para já, mas vai solidificando um lastro "humano" no filme. É a seguir que se introduz uma dimensão até agora ausente: sexualidade. A "versão definitiva" é mais feminina. E ela aparece em duas sequências extraordinárias. Uma, é a continuação do episódio das Playmates. Continuando a subir o rio, depois do espectáculo, Willard e os outros encontram um acampamento que está a ser "engolido" pela chuva. Onde já não ninguém comanda. Num helicóptero estão duas "playmates". E um cadáver. Willard troca gasolina por tempo de sexo para os seus rapazes. Chove. Coppola diz que sempre esteve no espírito do filme - "um filme sobre a hipocrisia moral, a mentira" - associar os jovens soldados e as raparigas como vítimas do logro.A morte, e o sexo, chegarão de novo. Também através de uma mulher (interpretada por Aurore Clément, que tinha ficado de fora do filme e que assim "ressuscita"). É uma sequência que se anuncia com as brumas, e depois vai também desaparecer entre as brumas. É a sequência da "Plantação Francesa". Parece o fantasma de um filme de Visconti. Mas eles são todos fantasmas, os membros de uma família francesa que há 70 anos vive na Indochina e que se recusa a abandonar o território. Há um jantar, e a pergunta do proprietário: "why are you here!". Eles sabem porquê: porque vivem lá há 70 anos. E os americanos? De um lado, o colonialismo francês, do outro o colonialismo virtual americano. Grito: "You are here for the biggest nothing on history". A dimensão anti-imperialista mais explicitada, queria Coppola. Depois do sexo, entre redes e véus, Aurore Clément verbaliza a dualidade de Willard: de um lado, um soldadinho perdido; do outro, capaz de matar. Como se fosse um duplo de Kurtz/Marlon Brando, o ogre que ele vai matar. Brumas de novo, e rumo a Kurtz. Que é o maior risco desta versão, ao mostrar mais imagens - diurnas - de Marlon Brando lendo em voz alta na revista "Time" as notícias oficiais sobre o Vietname para mostrar ao aprendiz Willard a extensão da mentira. Em nome desta explicitação, Coppola concorda que arriscou destruir um "mistério", o de Kurtz como Buda das trevas. Tornou-o mais humano, e mais contraditório. Como Willard. O seu grito: "The horror", "the horror!" é, neste versão, menos um grito metafísico, e mais um grito de ajuda e de denúncia."Apocalypse Now", versão definitiva, é hoje menos "a última trip", o último festim alucinogénico da cultura pop, ou fragmentos abstractos de um sonho perdido (isso continua lá); é hoje de uma grandeza mais abrangente e complexa, que se desenvolve como se tivesse crescido em 22 anos. Prolongando, afinal, tudo o que já estava lá.

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