Isabel Allende: "A fama é uma grande mentira"

Diz que cada livro seu é uma história que cresce dentro dela como um filho, nasce com o seu esforço e dedicação, e depois deixa de lhe pertencer. "Retrato a Sépia" é mais um anunciado "best-seller" de Isabel Allende, o último elo da trilogia com que atravessa duzentos anos da história do Chile.

Tem 58 anos e é escritora há vinte. Desta aritmética simples ressalta uma evidência: havia Isabel Allende antes do primeiro romance, "A Casa dos Espíritos" (1982). Foi jornalista, trabalhou na FAO em Santiago do Chile, administrou uma escola em Caracas. Sabe-se que era já rebelde e combativa, feminista e sobrevivente de contrariedades várias, como o abandono do pai, Tomás Allende, era ela pequena, ou o golpe militar no Chile a 11 de Setembro de 1973, que a obrigou ao exílio. "E depois dos livros continuarei a ser a pessoa que sou, com as mesmas dores de costas, as mesmas noites mal dormidas, o mesmo gosto por chocolate."A pessoa que ela é nasceu em Agosto de 1942 em Lima, Peru, onde Tomás cumpria funções de diplomata. Morou na Bolívia, em Beirute e na Europa, e vive na Califórnia há catorze anos. Mas é como chilena que se afirma, e o nome do tio, Salvador Allende, o presidente socialista deposto por Pinochet e presumivelmente morto pelos militares, é uma herança que muito preza. Não arriscaria, porém, uma biografia dele, porque o excesso de proximidade impede um olhar objectivo. Prefere partir de personagens reais e por vezes também de factos históricos, mas compor com eles as ficções que lhe apetece.Começa sempre a 8 de Janeiro, por ter sido essa a data em que iniciou "A Casa dos Espíritos", numa carta ao avô que ela soube estar a morrer. E assim fica também resolvido o problema da autodisciplina: "no dia 7 arrumo tudo, limpo o que resta do último livro." Sendo este mais um dos seus detalhes amplamente divulgados, pode dizer-se ainda que faz parte do seu colorido retrato público, retocado de informações diversas sobre a família, a infância, as crenças, os delírios, os desgostos e os métodos de trabalho.A propósito do lançamento em Espanha de "Retrato a Sépia", com uma primeira tiragem de duzentos mil exemplares, as recensões nos jornais somam elogios mas usam expressões de um conveniente distanciamento: "os seus leitores incondicionais", "os seus milhões de leitores", "os que gostam da prosa de Allende". César Casal, do "La Voz de Galicia", refere que há quem diga ser a escritora "uma parente menor de García Márquez." Sobretudo no primeiro romance, mas também em "Eva Luna" (1987) e "Contos de Eva Luna" (1989), essa ligação seria óbvia, até pelos traços narrativos do realismo mágico sul-americano. Mas Casal explica melhor: "O que em Gabo é quase celestial, na autora chilena é um céu demasiado azul e com grandes anjinhos. Este romance tem esse ponto 'kitsch' que a fez famosa." Embora conceda que a escrita dela é "uma estupenda maneira de se iniciar no vício da leitura."Seja como for, esta mulher de metro e meio, olhos grandes irrequietos e sorriso um pouco infantil, usa do humor como uma arma eficaz. Quando lhe perguntam como começou o romance com William Gordon, em quem depois se inspirou para a personagem Gregory Reeves, de "O Plano Infinito" (1991), responde que teve a sorte de conhecer "o último heterossexual solteiro da Califórnia", por isso aproveitou e ficou com ele. A propósito da mãe, figura tutelar que lhe corrige o castelhano e lhe detecta os "clichés" nos manuscritos, sublinha que só acrescenta as cenas de sexo depois, para não provocar Dona Panchita. Toda a gente fica satisfeita: a dedicação dos "seus" leitores ganha novas linhas de simpatia, os críticos percebem que não são para ali chamados, e por detrás desse escudo defensivo ela aninhará com certeza o que quer verdadeiramente preservar.Quanto à sua linha do tempo, usa-a para mostrar essa "grande mentira" que é o ser-se famoso. "Quanto mais vivemos, mais humildade adquirimos. Já estive em cima e em baixo muitas vezes. No auge da minha carreira de jornalista veio o golpe militar e num dia terminou tudo. Fui como refugiada para a Venezuela, sem papéis, sem dinheiro, sem contactos. Em Dezembro de 1991, apaixonada, sentindo-me jovem, pela primeira vez sentia que tinha dinheiro, estava num cocktail ao lado de Antonio Banderas, em Barcelona, quando o meu marido me veio dizer que Paula estava num hospital em Madrid. Apanhei o avião e a minha vida terminou. A minha filha estava em coma, era o horror."Já se sabia que Paula era portadora de porfíria, uma doença hereditária que recebeu por via do pai, Miguel Frías, primeiro marido de Isabel. Ficou em coma por um ano, acabando por morrer na casa da mãe e do padrasto, em S. Rafael, Califórnia, a 6 de Dezembro de 1992, tinha 29 anos. Durante muito tempo Isabel não pôde escrever. A reconciliação com a morte de Paula chegou-lhe longe de casa. "Num cruzeiro ao Alasca, o barco ficou um dia inteiro num fiorde onde há glaciares, uma coisa branca, imensa, não havia ruído, nem música. E aí a alma abre-se, é um momento de epifania." Não é católica, nem muçulmana, nem budista, porque "todas as religiões tradicionais foram inventadas por homens para controlar a vida das mulheres. Mas creio que há um espírito que transcende a matéria, e nós somos gotas desse oceano, que encarnou no meu corpo, no teu, na árvore, nos animais, noutras galáxias. Quando morrer, não creio que vou encontrar Paula. Paula é mais uma gota, e eu também sou, e aí encontramo-nos, nada mais." Retomou a vida pública com "Paula" (1994), exorcizando a dor privada desse ano inteiro no que ela diz ser "um hino à vida", e depois com "Afrodite" (1997). Voltou ao romance histórico com "A Filha da Fortuna" (1998).É de instantes dramáticos e coincidências divertidas, de revelações e actos de bravura que se compõe a sua vida extraordinária, à medida do seu talento para a contar. É esta a Isabel Allende que se conhece. Uns gostam, e ficam felizes porque o seu prazer de a ler contribui em direitos de autor para a fundação com que intervém activamente pelos direitos das mulheres e das crianças. Outros nem tanto. Ela não parece importar-se.Viaja na maior parte das vezes a trabalho. Em Lisboa, por exemplo, só conheceu o quarto e a sala das entrevistas no hotel, e o caminho para as televisões. Mas tem pena, porque gosta de um certo "choque cultural" quando visita lugares exóticos, como a Índia ou a Amazónia. De resto, além do tempo que dedica à família - tem um filho, Nicolás, dois filhos de William e os netos -, gosta de tratar do ambiente doméstico (de se rodear de "objectos bonitos") e de escrever. "Há um factor de inspiração necessário, um factor mágico, que me vem de fora. Depois, tudo é trabalho duro. Alguns génios, como Mozart, conseguem fazer algo excepcional sem esforço. Nós, os comuns mortais, temos de trabalhar."

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