Francisco Gentil: uma luta apaixonada

Brilhante cirurgião e professor, fundador do Instituto Português de Oncologia, é a ele que mais devemos o tratamento do cancro em Portugal. Falecido há 36 anos, Francisco Gentil lutou sem tréguas em favor dos doentes.

São oito horas da manhã. O imponente automóvel preto pára em frente do edifício. Acompanhamos os movimentos do passageiro, enquanto o motorista lhe abre a porta. Traz um chapéu preto, de feltro e abas largas, um capote sobre os ombros do fato escuro e elegante. Alto, forte, balanceia o corpo ao dirigir-se para a entrada, onde o aguarda uma pequena corte expectante. Cumprimenta-a com secura, avança pelos corredores, espreita, questiona, inclina-se sobre as camas, dirige palavras ternas aos doentes. Vai pousando o chapéu onde calha, levantando-o depois para examinar os seus rebordos. Se neles descobre qualquer partícula de pó, ergue a sua voz de trovão, implacável, vocifera, ordena. No gabinete, veste a farda branca de cirurgião, à moda francesa, sobre ela o avental largo e até aos pés, na cabeça o barrete achatado.A notícia da sua chegada correu já todos os pisos. Tão rápida como o alastrar do inconfundível odor a violetas da sua água de colónia. Francisco Soares Branco Gentil prepara-se para mais um dia de direcção férrea da "sua" casa, o lisboeta Instituto Português de Oncologia (IPO).Podíamos estar numa data qualquer da década de 30, 40 ou 50. Desde a sua criação, em 1923, até à data da morte do seu fundador, vítima de um acidente vascular-cerebral, a 13 de Outubro de 1964, o Instituto multiplicou-se em pavilhões, em serviços, em camas, em máquinas, em extensões e em efectivo combate das doenças cancerosas em Portugal. Cresceu, cumprindo o sonho megalómano de Francisco Gentil, esse homem que o médico e escritor Fernando Namora disse que "[via] longe e [via] diferente".Do trisavô, o cirurgião Francisco Soares Franco, poeta, presidente fundador da Sociedade de Ciências Médicas, autor do primeiro livro de Anatomia em português, se diz que se operou a si mesmo, com a ajuda de um espelho, a um tumor no nariz. Desconhecem-se outras raízes médicas na ascendência de Francisco Gentil.O menino nasce a 27 de Fevereiro de 1878, em Alcácer do Sal, onde o pai, António Faria Gentil, Secretário das Finanças em Lisboa, possui uma fazenda. Terminada a instrução primária, também o rapaz ruma à capital para concluir os estudos secundários. Por inclinação natural ou influência de um dos irmãos mais velhos, José Branco Gentil, famoso cirurgião, prestigiado professor da Escola Médico-Cirúrgica (hoje Faculdade de Medicina), Francisco inscreve-se nesta instituição.Como universitário, arrecada louvores e prémios, tem por mestres nomes-chaves da Medicina portuguesa: Câmara Pestana, Miguel Bombarda, Alfredo Feijão, Abílio Mascarenhas, José António Serrano, Alfredo da Costa. Com estes dois últimos, inicia-se como preparador de Anatomia. E mal defende a tese de licenciatura, "Sobre a Apendicite", em 1900, é nomeado Chefe de Clínica Cirúrgica. Em 1905, apenas com 27 anos de idade, inicia a carreira de professor, regendo as cadeiras de Patologia Cirúrgica, Clínica Cirúrgica e Obstetrícia.Faça-se uma pausa e esclareça-se que, dos seus 86 anos de vida, Francisco Gentil passou 43 como professor da Faculdade de Medicina (que abandonou, contrariado, por ter atingido o limite legal de idade), influenciando várias gerações de alunos, e cerca de 50 como cirurgião - aplicando técnicas arrojadas e introduzindo noções essenciais como a desinfecção, o estudo laboratorial ou o apoio do anátomo-patologista. Ele próprio resumirá: "Nos anos que decorreram de 1897 a 1947, fui externo, interno, cirurgião de banco, assistente de serviços cirúrgicos hospitalares, director dos hospitais civis e, ao mesmo tempo, estagiário de partos, interno das clínicas escolares, chefe de clínica cirúrgica, professor catedrático, vivendo sempre no 'Hospital'."Muitas páginas se ocupariam com a descrição detalhada de todas as proezas médicas e empreendedoras de Francisco Gentil. Da sua iniciativa e acção, colhem-se ainda os frutos através da Liga Portuguesa contra o Cancro ou da herança fundamental da primeira Escola Técnica de Enfermeiras, outrora em funcionamento no IPO. Dos seus interesse e aptidão para a construção e organização hospitalares através de diversas Comissões Clínicas, subsistem o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e o de São João, no Porto, e, sobretudo, o IPO. Mas mais do que edifícios e instituições, Gentil definiu e fomentou uma inédita filosofia médica, condensada na máxima: "Tudo pelo doente, nada contra o doente."Alice Gentil Martins, 72 anos, psicóloga clínica, recorda com ternura o seu avô, com quem trabalhou como enfermeira pediátrica, no IPO. "A base da sua vida foi a paixão exclusiva pela obra em prol do bem estar dos doentes, pelos quais ele tinha espôntaneo carinho e compaixão e um superior respeito. Exigente, perfeccionista, emotivo, e por isso muito intolerante, não desculpava nada que os pusesse em risco."É famoso o episódio no qual, envergando a bata e touca de cirurgião e tal como costumava fazer, Gentil pediu a um dos internados a sua opinião sobre o almoço. Pouco depois, este comentava: "Isto aqui é tão bom que até o cozinheiro nos pergunta se a comida estava boa!..."Ainda hoje, no IPO, se pode observar como tudo foi pensado para servir os doentes até no mais ínfimo pormenor. Os pavimentos foram revestidos com cortiça, para maior isolamento do som. Em todas as enfermarias existem amplas janelas para entrada directa do sol, projectaram-se com zelo jardins internos e externos. As canecas não tinham asas, para que mais facilmente se detectasse a temperatura do seu conteúdo. Em todos os serviços, quartos com maior privacidade, denominados "de repouso", acolhiam os doentes terminais, permitindo-lhes morrer com dignidade, apoiados pela família. No IPO, era facilitada a assistência por parte de todas as confissões religiosas. Pela primeira vez em Portugal, as internadas podiam receber e manter os seus filhos nas enfermarias. Também pela primeira vez, mas a nível mundial, criou-se uma unidade multidisciplinar de cancro infantil.O culto quase obsessivo da higiene - ali foi inaugurada a prática de esterilização de arrastadeiras -, do profissionalismo, da delicadeza e da humanidade, do aprumo até na apresentação física era exigido a todos os funcionários sem reservas. Duas frases lapidares de Mestre Gentil orientavam o IPO: "Nada, nem mesmo a clássica vaidade dos médicos, deve sobrepor-se ao interesse dos doentes"; ou "Os doentes sem recomendação são recomendados especiais do Director." Tal como refere o seu neto António Gentil Martins, 70 anos, cirurgião, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, ex-presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro, muitos foram os "profissionais de grande nível que, por não corresponderem a estas exigências, tiveram curta permanência no Instituto".Os motivos do interesse de Francisco Gentil pela luta anticancerosa são desconhecidos. A ele não será contudo alheio o sofrimento pela perda de uma prima muito querida e da própria mãe, vítimas da doença.António Gentil Martins defende que, ao sentimento de impotência perante uma doença, na época, praticamente desconhecida, o avô sobrepôs a prioridade do tratamento. "Ele aceitou-se como incapaz de descobrir a causa - por isso, não enveredou prioritariamente pela investigação - e, rodeando-se de colaboradores de primeira água, deu prioridade ao que de melhor existia em termos de tratamento."Movendo influências e amizades, inspirando ódios, Francisco Gentil tudo fez para garantir o sucesso da sua causa. "Republicano, ele foi um homem político, sem se comprometer com a política. Sidónio Pais foi seu inimigo, Afonso Costa e Salazar protegeram-no. Ambicioso, arguto, ele foi também um homem isento, honestíssimo, que tudo sacrificou, até os aspectos materiais, à sua luta ", sustenta o endocrinologista Luís Silveira Botelho, 72 anos, ex-aluno e colaborador do cirurgião, seu principal biógrafo. Personalidade contraditória, Francisco Gentil é ainda recordado como um administrador e professor caprichoso, autoritário e, simultaneamente, como um médico paciente, de inesgotável dedicação aos seus doentes.O neto António recorda a sua "disciplina férrea", mas também a sua "extraordinária e inexcedível humanidade." A neta Alice lembra que poucas vezes o viu rir, e que o fazia apenas por motivos profissionais. Muitos testemunharam tê-lo visto chorar pelos seus doentes. O certo é que Francisco Gentil ficará para sempre na História da Oncologia portuguesa. E que, nos corredores do IPO, ainda se sente um ténue cheiro a violetas.

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