Voltaire em Liliput

"Micromegas" é "um pequeno conto filosófico despretencioso". Escrito por um Voltaire irritado com "As Viagens de Gulliver", de Swift. Serve também de ataque fútil a M. de Fontenelle. Os franceses são assim.

Num planeta chamado França, quer dizer "Terra", vivia "um jovem de muito espírito" chamado François-Marie Arouet, mais conhecido por Voltaire, que a certa altura, ou por estar momentaneamente desocupado, o que para ele seria doloroso, ou porque Swift o enervou com as "Viagens de Gulliver", achou o livro artificialmente prolongado o que teria acabado por lhe dar um carácter "pretencioso" (ver o posfácio de Rui Tavares, que é igualmente tradutor do texto desta muito bonita edição que contém ilustrações de Vera Tavares).O jovem, que contava por esta altura cinquenta e oito anos e que aliás parece que nem se encontrava na Terra no momento, quer dizer, em França, mas sim em Potsdam na corte de Frederico da Prússia, terá então decidido escrever "um pequeno conto filosófico despretencioso".Fazendo isto, atingia quer Swift, que segundo ele se aplicava demais, quer Luis XV e o seu reino envelhecido que estiolava no catolicismo (apesar de, mesmo assim, nesse tempo, e segundo "Micromegas", o herói do conto, toda a humanidade falar unicamente francês) e também os filósofos e os seus sistemas e sobretudo... oh, sobretudo, M. de Fontenelle, com quem Voltaire havia tido uma querela!Todo o francês tem, quase em primeiro lugar na sua vida, um M. de Fontenelle a abater. Não porque este lhes tenha feito mal, nada disso. Não. Só porque o desgraçado lhes desagrada por qualquer razão, de preferência fútil. Ao longo de uma vida, os M. de Fontenelle podem ir das centenas às centenas de milhar. A sátira passa adiante de tudo. É um pouco doentio, mas é assim.Digamos que em Voltaire havia Claire Brétecher. E que o expressionismo alemão, por exemplo, devia, e deve, repugnar profundamente aos dois.Se a obra de Voltaire ficou um bocado fechada no seu século - e no Panteão onde foi enterrado com grande pompa depois da revolução - a língua de Voltaire é a nossa. A deles. A mesma que qualquer pessoa que viva mais de três meses em Paris reconhecerá por toda a parte, empregue por todos. Desde o muito snob ministro da cultura até ao padeiro, em geral mais insuportável ainda. A alegria de viver de Voltaire era tanta que a sua voz atravessa os séculos com a mesma facilidade e a mesma volubilidade caprichosa com que " Micromegas" atravessa a via láctea. Se ele aqui estivesse hoje, nada surpreenderia verdadeiramente o seu olho céptico e a sua vitalidade sem limites. Seria " parisiense".Resumindo um pouco: Micromegas era um habitante da estrela "Sirius". Era tão inteligente como Pascal, "segundo conta a sua irmã" - a irmã de Pascal; Voltaire refere-se a "Vida de Pascal Escrita Por Mme Pérrier, Sua Irmã" em que esta conta que, aos doze anos, Pascal adivinhou sozinho trinta e duas proposições do primeiro livro de geometria de Euclides. Ver as notas do livro. No entanto, Voltaire esclarece que, de qualquer maneira, Pascal se transformou num "geómetra bastante medíocre e um metafísico francamente mau". Portanto, um dia, Micromegas publica, lá na sua distante estrela, um livro que o "mufti" do seu país, "mesquinho e muito ignorante" considera suspeito, temerário e até herético. O que o leva Micromegas a ser banido por oitocentos anos.Depois de "compor uma canção muito divertida ao mufti, que por sua vez não se embaraçou nada com isso", Micromegas pôs-se a viajar de planeta em planeta. A certa altura, aterra em Saturno, onde conhece um saturniano que vem a tornar-se seu companheiro. O saturniano é M. de Fontennelle. Ou o seu retrato. M. de Fontenelle foi o secretário da Academia das Ciências francesa durante cerca de cinquenta anos, e autor de um livro sobre extraterrestres. (É verdade. Consultar as notas do livro.) Parece que o pobre homem se reconheceu na caricatura e que reagiu muitíssimo mal.Enfim, Micromegas e o saturniano chegam à Terra, um planeta minúsculo para as dimensões dos dois. Aqui encontram um navio no qual um grupo de filósofos tinha partido em excursão até à calote polar e todos discutem (em francês, claro). Dessa conversa resulta a seguinte conclusão: um intelectual deve manter-se expectante.Na contracapa do livro encontra-se um comentário de Borges em que este diz que Voltaire era tão amargo como Swift. Depende, diríamos nós, da conotação mais ou menos solene que se queira dar a esta amargura: Swift era-o de temperamento. Voltaire, não. Há no paradoxo francês um sentido do trágico que coexiste perfeitamente com a militância e com a exigência moral. Lembramos o "Affaire Calas", um homem acusado de ter morto o filho por motivos religiosos, ou o caso de Michel Servet, queimado vivo em Genebra. Voltaire defendeu activamente o primeiro e falou abundantemente do segundo. E Borges termina: "Voltaire morreu aos oitenta e quatro anos, em Paris, pouco depois da estreia clamorosa da sua tragédia 'Irene'. Ao concluir o quinto acto o palco foi invadido por uma multidão de admiradores que lhe ofereceram uma coroa de louros. Voltaire agradeceu assim: 'Vous m'etouffez sous des roses'."

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