O homem que nos dá música

"Last Night A DJ Saved My Life" é a história do "disc-jockey" desde as suas origens amadoras até ao presente estatuto de vedeta da cultura de dança. O livro vem acompanhado de uma compilação ilustrativa das principais etapas dessa evolução, recheada de música gloriamente efusiva e obscura.

"Houve um período no Shoom em que um grupo de pessoas tentou elevar-me ao estatuto de novo messias. Era um bocado assustador, porque era tão intenso. Um tipo abria uma página da Bíblia e o meu nome - Daniel - aparecia num parágrafo. E ele dizia: 'Isto és tu! Isto é o que está a acontecer agora'." Estas palavras são de Daniel Rampling, DJ e proprietário do clube Shoom, pioneiro da cena acid house inglesa que mudou a face da música popular no último quarto dos anos 80.A elevação do DJ ao estatuto de novo messias será uma caricatura, corolário perverso da sua ascensão a figura-chave da cultura popular. Esta é a ideia de Bill Brewster e Frank Broughton no livro "Last Night A DJ Saved My Life", onde o papel hoje desempenhado pelos DJ é comparado ao dos feitiçeiros, xamanes e sacerdotes de outrora. De dia não se distinguem do mais comum dos mortais; de noite transfiguram-se em alquimistas da transcendência colectiva, dirigindo rituais pagãos de celebração da vida através da dança. Esta aproximação do deejaying à religião é a tese mais especulativa do livro, aliás corroborada pelos testemunhos recolhidos dos mais importantes DJ de sempre. Serve para acentuar o protagonismo do DJ como elemento essencial da música de dança e legitimar uma biografia de 472 páginas, que lhe traça as principais etapas evolutivas. Não pretende ser uma história da música de dança, mas anda lá perto, como reconhecem os autores, eles próprios com uma carreira de deejaying em Nova Iorque atrás de si. A história da música de dança tem sido exaustivamente documentada na última meia década, mas na óptica dos subgéneros musicais, das drogas e dos movimentos sociais. Ao centrar-se no DJ, "Last Night A DJ Saved My Life" devolve à música de dança a excitação que primeiro lhe deu alma. Enquanto nos ensaios pré-existentes a produção de música de dança é privilegiada pela sua cotação artística, aqui aparece como derivado do acto de deejaying. Isso desloca a ênfase dos últimos dez anos de história dançante para as duas décadas precedentes, uma vez que foi através delas que o deejaying ganhou proeminência e adquiriu os expedientes técnicos e criativos que diferenciam a sua actividade.A colecção e o engenho. Para um irredutível do rock, por exemplo, o vedetismo e as fortunas que hoje ganham alguns DJ são um escândalo. Porque um DJ não canta, nem toca nenhum instrumento e basicamente põe discos que outros fizeram. Perante estes preconceitos, ainda hoje comuns, a primeira tarefa dos autores é responder à pergunta: afinal, o que é que faz um DJ?A resposta passa por distinguir o DJ de rádio do DJ de discoteca. O primeiro é um divulgador; o segundo faz algo de diferente: combina discos numa narrativa improvisada para criar um "set", um desempenho que não se reduz à soma dos discos passados, mas equivale a uma actuação personalizada e enquanto tal equiparável à de um músico tradicional. Neste sentido, é um misto de artífice e de artista, equação que se for bem sucedida em termos de comunicação - se conseguir criar uma atmosfera única que leva uma audiência a partilhar de um sentido de comunidade - faz dele o equivalente moderno de um feiticeiro ou de um sacerdote. A pergunta seguinte é saber em que consiste o segredo da sua magia, e responder-lhe implica recapitular o percurso do DJ desde as suas origens como "jukebox" humana até ao actual estatuto de poder dentro da indústria do entretenimento. Várias discotecas abriram nos anos 50 na Europa e nos Estados Unidos, nelas foram celebradas uma série de modas dançantes e alguns dos seus DJ ganharam projecção. Mas, para Brewster e Broughton, o primeiro passo para a criação do que hoje chamamos música de dança foi a emergência da northern soul.Nascida no Norte industrial de Inglaterra dos anos 60, foi a primeira corrente musical baseada em discotecas e na noção da dança como um escape do quotidiano. Foi também a primeira a definir-se não por quem cria, mas por quem consome, nascendo de uma paixão britânica por discos e falhados de soul acelerada norte-americana. Dada a sua obscuridade, os DJ tornaram-se caçadores de raridades. O hábito hoje corrente de apreciar um DJ pela preciosidade da sua colecção de discos nasceu com o northern soul, que pelo meio também deu origem aos actualmente obrigatórios discos sem etiqueta (white labels), como um estratagema de os DJ da altura salvaguardarem a exclusividade das velharias soul que descortinavam.Ter uma colecção de discos invulgares é um dos traços que garantem a especificidade de um DJ. Mas ter grandes discos e não ter a ciência, ou a técnica, para os passar, não serve de grande coisa. O northern soul avançou nesse sentido, com alguns DJ a criarem sequências pré-definidas de discos. Porém, o essencial da técnica do deejaying foi adquirido noutras latitudes. Os jamaicanos introduziram os sistemas de som para festas itinerantes na década de 50 - o que se haveria de tornar a pedra-de-toque das raves britânicas 30 anos depois -, e simultaneamente os toasters, mestres de cerimónias ou deejays vocalistas, improvisando rimas sobre ritmos - figura depois recriada como elemento essencial do hip hop, jungle e speed garage. Nas décadas seguintes, os DJ jamaicanos foram os primeiros a evoluir para a produção, introduzindo os primeiros estilos de música explicitamente apontados aos sistemas de som (ska, rocksteady, reggae, etc), inventando as versões instrumentais, pioneiras das remisturas de dança, que evoluíram para o dub, ciência "primitiva" que está na origem do conjunto de manipulações de um disco que se veio a identificar com o artifício do DJ. Da mística ao vedetisto. O que os jamaicanos ainda não tinham era o conceito de deejaying como set narrativo, inovação que se atribui a Francis Grasso, um dos pioneiros do disco sound e o primeiro DJ moderno digno do título. A sua carreira começou em 1968 no club nova-iorquino Salvation Too, daí evoluindo para o Sanctuary, discoteca dominada por uma clientela negra, hispânica e homossexual, onde desenvolveu técnicas inovadoras: o beat mix (sobrepor o fim de um disco com o início de outro sincronizando as suas batidas), o slip-cue (manter um disco parado enquanto o prato gira debaixo dele de forma a começar a tocá-lo precisamente onde começa a primeira batida) e o phasing (tocar duas cópias do mesmo disco ligeiramente dessincronizadas de modo a obter um efeito de eco dramático). A colecção de discos que faz excepção e o rigor no domínio das técnicas que permitem um desempenho coerente são essenciais, mas há um terceiro factor, o mais raro e apreciado que garante a especificidade do DJ: a atmosfera única projectada pelo seu desempenho, capaz de reflectir e enformar o espírito da audiência. É a mais-valia que foi introduzida por outro percussor do disco sound, David Mancuso, quando começou, em 1970, a organizar festas no seu apartamento para pagar a renda de casa. As festas conhecidas por The Loft (o apartamento) transformaram-se depois num clube que existiu durante um quarto de século. A pedra-de-toque da sua longevidade não residiu num som específico - as opções musicais iam de Traffic a Manu Dibango, passando pelos Temptations -, mas pela onda de misticismo hipnótico com que os articulava, projectando na música de dança o idealismo comunitário herdado da contracultura dos anos 60. O mesmo eclectismo sonoro e sentido de comunidade haveriam de reemergir pelas mãos do seu discípulo Larry Levan no Garage, último refúgio para as minorias nova-iorquinas que estiveram na origem do disco sound, mas acabaram proscritas e segregadas pela sua popularização e comercialismo no final da década de 70. A música de dança haveria de ressuscitar na primeira metade dos anos 80 em Chicago, onde o disco sound nunca deixou de estar na moda nas discotecas frequentadas por negros gay. Mas, tal como sucedeu com o northern soul, a música preferida desta clientela deixou de se produzir, dando origem a uma corrida às raridades. Se no Norte de Inglaterra a nostalgia dançante se quedara pelo coleccionismo, em Chicago, DJ como Ron Hardy e Frankie Knuckles transitaram para os estúdios munidos de novos engenhos de criação e registo electrónico. Foi o que deu origem à house e ao tecno de Detroit, subgéneros aparentados, com que se iniciou a música de dança do presente, a que é dominada pelo DJ que é também remisturador e produtor.É nesta etapa que se esgota "Last Night A DJ Saved My Life", mas o livro não acaba sem um amargo capítulo sobre a transformação britânica do DJ em superestrela pop: DJ que alcançaram credibilidade graças ao seu talento, como Carl Cox, Jeremy Healy, Paul Oakenfold e Sasha, e depois entraram num espiral de vedetismo e de honorários galopantes, que andam em digressão como estrelas rock, como elas cultivam à sua volta uma corte de admiradores de groupies e fazem-se pagar astronomicamente por darem o nome a remisturas e compilações pelas quais nem sempre têm apreço.

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