Divinas Guitarras

Quando, sensivelmente a meio do concerto, os Divine Comedy anunciaram "Let's rock!", já não havia dúvidas quanto à ruptura total que o seu novo disco "Regeneration", motivo para a apresentação da banda no Coliseu dos Recreios de Lisboa, no domingo passado, representava. Sintomaticamente, "Pictures of Matchstickmen", um clássico dos Status Quo, foi a "cover version" que a banda norte-irlandesa ofereceu ao (pouco) público que se deslocou à sala dos Restauradores, mostrando que longe vão os tempos em que "Johnny Mathis's Feet" dos American Music Club ou "Make It Easy on Yourself" de Burt Bacharach caíam no lote das "most wanted" de Neil Hannon.Passavam poucos minutos das 21h30, quando subiram ao palco do Coliseu os Divine Comedy. O espectáculo era algo desolador. Numa sala onde cabem cerca de 5000 almas, não estariam nem metade das pessoas. O facto de até há uma semana se ter sucedido uma avalanche de concertos no âmbito da última edição do Festival Super Bock Super Rock, talvez explique a fraca a adesão a este concerto, mas também não será de todo impossível que o novo trabalho de originais ainda não tenha seduzido os "habitués" dos Comedy, já que o seu som sofreu abissais mudanças. A elegância, sofisticação e fausto das composições "pop" do passado cedem em "Regeneration" espaço a um som muito mais agressivo e experimental, não sendo totalmente descabido afirmar que, se calhar, pelo menos a julgar por esta prestação ao vivo, para os Divine Comedy o "rock" não morreu. Repare-se até que a própria imagem da banda sofreu profundas alterações. Para quem esperava reencontrar o vocalista da banda no habitual rigor do fato cinzento, o espanto deve ter sido impressionante. O cabelo cresceu e a fazenda foi substituída pela "t-shirt" e calças de ganga, numa pose que faz esquecer o bem-comportado "son of a preacher man" de antigamente.O concerto arrancou, então, com um primeiro tema retirado de "Regeneration" - "Love What You Do" -, a que se seguiu um dos clássicos hinos de "Promenade", "Tonight We Fly", numa versão atravessada por uma muralha de guitarras, distante do harmonioso e melódico original.Pese embora o número reduzido de pessoas presente, o ambiente de celebração não deixou de se impor, o que explicará também o agrado de Neil Hannon que aproveitava para dialogar com os seus espectadores, sublinhando o prazer de ali estar, confessando no entanto sentir-se um pouco assustado com o tamanho da sala ("This is a very, very big room").Seguir-se-ia "Bad Ambassador", um dos poucos temas de recorte clássico do seu último trabalho e fiel à linha a que os Divine Comedy nos habituaram, cortado imediatamente pelo turbilhão de rajadas sonoras de "Lost Property" (a primeira piscadela de olho a "Fin de Siècle", com as guitarras a substituírem o lirismo da orquestra no álbum) e pela distorção hipnótica de "Dumb it Now". O ambiente clássico dos Divine Comedy seria reposto nos dois temas seguintes. A melancolia conseguida através de uma guitarra acompanhada por teclados e acordeão de "Life on earth" fez pensar na "chanson" francesa e impôs uma certa magia que seria sublinhada pela ingenuidade "lolipop" de "Perfect lovesong". Nesta primeira parte, tempo ainda houve para a recuperação de dois temas de "Fin de Siècle": o majestoso e quase operático "Sweden" e o genial "hit" "Generation sex".Mas na segunda parte, o registo representou a surpresa para quem já se tinha entregue ao delírio das guitarras saturadas. Deu-se descanso ao "rock" e atacou-se o filão "pop", numa demonstração de generosidade para quem debutasse pela primeira vez num concerto dos Divine Comedy à espera do velho ligeiro colorido orquestral. "Frog Princess" e a dissertação sobre as linhas rodoviárias de "National express" não desiludiram os presentes, mas estava reservada mais uma curiosidade quando soaram os primeiros acordes de.... "Last Christmas", delicioso lixo "eighties" dos emblemáticos Wham de George Michael. Se juntarmos a isto a recuperação do musculado "Physical" de Olivia Newton-John na versão electrónica dos britânicos Goldfrapp e "Believe" de Cher cantado por Lloyd Cole, podia já começar a pensar-se numa compilação de êxitos chunga para breve.Só que, ao fim de uma hora e meia, os Divine Comedy davam por terminada a sua apresentação com mais um tema de "Regeneration", "Beauty Regime". E, no Coliseu dos Recreios, fez-se "rock".

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