Os mistérios das lacas

Patente em Lisboa, "O Mundo da Laca" retrata a evolução desta técnica durante dois mil anos. Mas, para além de uma belíssima colecção de objectos de arte, esta é também a ocasião de observar como o gosto muda consoante o público.

Trata-se da última das exposições temáticas apresentadas pelo Museu Gulbenkian antes do término das suas obras de reestruturação. "O Mundo da Laca, 2000 Anos de História" explora uma das mais fascinantes técnicas que vieram do Extremo Oriente e que a Europa adoptou entusiasticamente. Para poder ser trabalhada, a laca, técnica muito antiga, necessita de condições climatéricas muito específicas - reunindo, simultaneamente, o calor e a humidade -, que durante séculos não podiam ser encontradas na Europa. Acresce que a laca é a seiva de uma árvore que apenas cresce no Extremo Oriente e que solidifica sobre uma multiplicidade de suportes desde que as tais condições estejam reunidas. O brilho incomparável que confere aos objectos, as qualidades que lhes atribui - de impermeabilidade, por exemplo - fascinou os primeiros europeus que tomaram contacto com os longínquos países asiáticos. Foram eles, quem, pouco depois, traria objectos revestidos com este material para o seu país de origem, Portugal.A Fundação Calouste Gulbenkian, que possui um núcleo de objectos de arte feitos segundo esta técnica - entre biombos, móveis, caixas de vários tipos, encadernações, etc. - apresenta agora esta belíssima exposição monográfica sobre o mundo da laca. O comissariado foi entregue a Pedro de Moura Carvalho, especialista nesta área, que elaborou uma exposição didáctica, de modo a elucidar o visitante da forma mais eficaz sobre as diferenças técnicas, a evolução do gosto através dos séculos e, sobretudo, sobre a diferença entre as peças feitas para o mercado oriental e aquelas que se destinavam ao mercado europeu. Afinal, tudo se passa na laca como na cerâmica: há peças de exportação, que obedecem à ideia que no Oriente se fazia do gosto europeu, e peças para venda no próprio mercado oriental, incluindo as famosas lacas imperiais, as de melhor qualidade.A técnica da laca é conhecida há cerca de seis mil anos. Mas a peça mais antiga agora em exposição é contemporânea do Império Romano, ou seja, tem cerca de dois mil anos. Trata-se de uma pequena taça chinesa, simplesmente decorada com uma barra de motivos vegetalistas, que, na montagem, surge junto de uma caixa de espelhos também muito antiga. Contudo, e as montagens permitem estas surpresas, há uma peça contemporânea, japonesa, que se entrevê quando se observam estas duas peças. É que a técnica da laca jamais desapareceu, e continua a ser associada às artes decorativas, dependendo do gosto, da vontade e das capacidades de cada "designer".As primeiras peças da exposição seguem esta linha e, na sua decoração, apresentam os motivos característicos da arte chinesa. Há dois enormes biombos, um deles com a vista de Macau, de um lado, e de Cantão, do outro, que se contam, seguramente, entre as mais espectaculares peças apresentadas. Depois, com o passar do tempo e as diversas diferenças regionais -- cada região ou país asiático desenvolveu a sua técnica de trabalho da laca -, chegamos rapidamente à arte namban, que os japoneses desenvolveram para exportação ou consumo interno das comunidades cristãs. Namban queria dizer "bárbaros do sul", o nome pelo qual os japoneses designavam os portugueses.É nas lacas namban que se encontram os conhecidos embutidos em madrepérola, muito característicos da produção de objectos em laca deste estilo, técnica que pode ter sido importada da Coreia ou do Gujarate indiano. Aqui, destaquem-se três peças emprestadas para esta exposição: um pequeno oratório com uma imagem de uma madona, da Fundação Ricardo Espírito Santo; um crucifixo em marfim, mas cuja cruz é um trabalho de laca namban, vindo do Convento de Santo Esteban, em Salamanca; e um pequeno cofre indiano, pertencente a uma colecção particular. Se o material é o mesmo nas três peças, já os motivos decorativos são diferentes, consoante as culturas que os criaram.A partir da segunda sala, as peças feitas no Oriente com motivos decorativos ocidentais - ou as peças europeias feitas com madeira oriental lacada - tornam-se predominantes. Há peças renascentistas e maneiristas de grande interesse, pelo pormenor dos motivos de arabesco que revelam, pela riqueza dos acabamentos, pelas fontes iconográficas que utilizaram. Mais tarde, a Europa tentou imitar a laca através da utilização de vernizes nas peças acharoadas, também presentes na colecção. Mas a laca só conseguiu ser fabricada aqui já durante a década de 30 do século XX. A colecção Gulbenkian possui alguns destes exemplares, também integrados no contexto da exposição.

Sugerir correcção