Uma morte "higiénica e ecológica"

O "activista" pró-crematório de Ferreira do Alentejo parece ter esperado pela sua conclusão para deixar a vida. E assim estrear uma estrutura que ajudou a pagar e que considerava higiénica Com a sua morte, no fim-de-semana passado, Mariano Feio alcançou aquele que terá sido o seu principal objectivo dos últimos anos. O professor universitário jubilado, de quase noventa anos, fez dela a sua grande "afirmação científica", diz um jovem de Ferreira do Alentejo, a vila onde Mariano Feio escolheu acabar os seus dias.Tem até o seu quê de poético, essa "afirmação": fervoroso apologista da cremação como método higiénico e ecológico de eliminação de cadáveres - "muito mais limpo do que a putrefacção de um corpo", dizia -, Mariano Feio "convenceu" a autarquia a construir um crematório em Ferreira, que ajudou a financiar.Na terça-feira passada, uma semana após a conclusão da estrutura - a terceira do país, a juntar aos crematórios de Lisboa e Porto - foi a cremação do seu próprio corpo que estreou o forno da vila alentejana.Cumpriu-se assim o seu desejo de demonstrar o que sempre sustentou: que o homem é pó e cinza e a eles torna. Escapou deste modo à ostentação e à feira de vaidades que considerava serem os funerais e campas religiosos. "A morte é o fim", insistia a sua mente positivista.Chega a dar ideia que o velho professor esperou pelo crematório para poder finalmente morrer segundo a sua vontade. Talvez feliz. Descansado, certamente.Há uns anos, já os seus argumentos haviam encontrado o interlocutor ideal no presidente da câmara, o socialista "e ateu" Luís Ameixa.Mas tratava-se de um investimento de monta - perto de 40 mil contos. E para uma infra-estrutura nem populista nem imprescindível, no entender de muitos. Mariano Feio não desarmou: ofereceu o forno, no valor de 18 mil contos, tendo a câmara arcado com a restante despesa.Luís Ameixa está contudo convencido que o crematório será muito mais do que um novo edifício junto ao cemitério. A escassez de espaço para sepulturas e o seu preço; o tempo de espera a que estão sujeitos os cadáveres destinados a cremação em Lisboa (que pode chegar a uma semana) e os contactos já estabelecidos por câmaras do Algarve, onde residem muitos estrangeiros adeptos da cremação, assim o demonstram.E agora o crematório pode ser usado "à vontade". É que, conta Dores Ramalho, engenheira biofísica do município, o crematório estava tão "colado" à figura do professor que ninguém se teria atrevido a fazer-se cremar antes dele, mesmo existindo a possibilidade desde 12 de Março.Nunca se viu, em Ferreira do Alentejo, funeral tão concorrido quanto o de Mariano Feio. A estima que conquistou e a generosidade com que ofereceu e financiou equipamentos sociais à região atrairam ao serviço fúnebre dezenas de pessoas. Mas outras tantas apareceram para satisfazer uma enorme curiosidade: ver o crematório em funcionamento.A afluência foi tal, mesmo antes de chegar o corpo, que a urna teve de ficar atravessada na "sala de despedida" que antecede o forno propriamente dito. E aqui sucedeu a primeira desilusão dos curiosos: a entrada da urna para o forno é feita longe dos olhares dos vivos, quando muitos pensavam, entre o fascínio e o temor, que a cerimónia seria mais... visualmente explícita. E depois outra: afinal não cheira a carne assada durante a cremação, mito que se espalhara pela vila.O desapontamento mandou muitos dos "voyeurs" para casa. Mas alguns não resistiram a ver "o que se ia fazer das cinzas".E o que se fez foi seguir as recomendações do próprio professor: que os seus restos fossem depositados no roseiral, preparado para o efeito, no cemitério. Num local "o menos incómodo possível", deixou escrito.No final da semana, apenas um monte de flores meio apodrecidas junto ao roseiral denunciava a sua partida. Depois, nenhum outro sinal restará da sua "última morada": nem lápides, nem fotografias, nem epitáfios. Só uma rosinha salmão, ainda em princípio de vida, que outras cinzas poderão partilhar. Como Mariano Feio teria apreciado.

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