Do Oriente, em estado puro

Portugal vai herdar a maior colecção de arte popular asiática, futuro acervo do Museu do Oriente. São muitos milhares de peças que já estão em Lisboa, armazenadas. Data de abertura prevista: início de 2002. Tudo começou com um despejo em Paris...

A carta chegou à Fundação Oriente, inesperada, vinda de Paris. Um tal Jacques Pimpaneau oferecia-se para se instalar em Lisboa, de armas e bagagens. E que bagagens: milhares e milhares de objectos, livros, vídeos, num conjunto único do mundo, espelhando a antropologia de praticamente toda a Ásia. Em troca, pedia nada. Nada?Estava-se no final dos anos 90 e o professor Pimpaneau debatia-se com um grave problema. O seu museu Kwok On, instalado na capital francesa desde 1973, acabara de ser despejado do edifício que ocupava e cuja renda era paga pelo Ministério da Cultura francês. O poderoso Museu Guimet, um dos maiores do mundo em orientalismo, olhava com cobiça para o extraordinário acervo que Pimpaneau tinha conseguido reunir ao longo de décadas e estava disposto a construir um anexo para albergar peças da cultura popular asiática."Mas Paris, além do Guimet, já tinha o Museu do Homem, nas áreas oriental e antropológica a oferta era suficiente. Pensei em Lisboa", explica-nos o professor, enquanto aprecia uma refeição à base de salada, num dos poucos dias de sol deste Inverno, à beira-Tejo. "Portugal foi o primeiro país ocidental a chegar ao Oriente, foi o último a sair. Mas, estranhamente, nunca teve uma escola orientalista, o seu acervo museológico pouco tem de peças asiáticas. Ouvi falar da intenção da Fundação Oriente de construir um novo museu, de raiz, e fiz a proposta." Sem nada em troca?"Pois, esse é que foi o problema. Em Lisboa devem ter estranhado muito que eu não tivesse pedido dinheiro, mas apenas garantias logísticas a médio e longo prazo", ri-se Pimpaneau. "Foi então que, em Abril de 1998, houve uma reunião da Fundação Europa-Ásia em Paris. Eu era um dos académicos convidados, soube que estava lá uma funcionária da Fundação Oriente e interpelei-a. Então não tinham respondido à carta? Ela perguntou-me quanto é que aquilo custava. Eu disse que não custava nada.""Bom", recorda o sinólogo, "o dr. Carlos Monjardino [Presidente da Fundação Oriente] foi pouco depois a Paris e as coisas começaram a avançar." Mas a própria fundação enfrentava um processo difícil, que se prendia com a instalação do seu projecto, o Museu do Oriente. Depois de adquirir terrenos para esse fim na Praça de Espanha, em Lisboa, com a garantia da câmara de que os vendedores ambulantes ali instalados seriam desalojados, cansou-se de esperar. A urgência tornou-se ainda maior quando o acervo Kwok On chegou. Milhares de peças frágeis, muitas em papel ou tecido, continuam hoje armazenadas, embora num eficiente, mas dispendioso, sistema de controlo de humidade e temperatura. A fundação ainda tentou negociar a compra do cinema São Jorge, na Avenida da Liberdade, mas entrou em novo litígio com a câmara, que aliás pôs em tribunal. E avançou sozinha para uma solução, pois o futuro Museu do Oriente não podia esperar mais. O almoço com Pimpaneau, conselheiro científico do museu, e a mulher, Sylvie Pimpaneau, a conservadora, decorreu ao lado das futuras instalações: os antigos armazéns frigoríficos da Administração do Porto de Lisboa, em Alcântara. Trata-se de um contrato de comutado, de 15 a 30 anos, e o espaço deverá ser inaugurado no início de 2002. Ao Kwok On juntar-se-á o acervo entretanto reunido pela fundação em compras feitas em Macau, Hong Kong ou nos grandes leilões de Nova Iorque ou Paris organizados pela Christie's ou pela Sotheby's (a última é um espectacular capacete em arte Nan Ban, da época em que os portugueses influenciavam a cultura e a política japonesa).Como há uma grande ansiedade por parte da fundação e do casal Pimpaneau em desencaixotar o mais depressa possível os objectos, para ver o seu estado, e porque a essa ansiedade natural se tem juntado alguma frustração por Lisboa não poder beneficiar de imediato de tal colecção, a Kwok On fará a sua estreia em terras lusas numa exposição a realizar em Outubro, no Palácio da Ajuda, sobre "Religião Popular Chinesa". Serão utilizados os 600 metros quadrados da Galeria do Rei D. Luís e pode garantir-se que será de cortar a respiração, tal a beleza dos objectos, a riqueza cromática, o mistério milenar que inspiram, o exotismo e ineditismo para olhos portugueses, pouco habituados a tal espectáculo."Pensamos realizar uma grande exposição por ano", diz Sylvie Pimpaneau. Mesmo sendo grande, o futuro Museu do Oriente não poderá expor de uma vez todo o seu acervo. "O Ramayana na Índia e na Ásia do Sueste" deverá inaugurar o museu em Alcântara, com "Os Teatros de Sombras e de Marionetas na Ásia" e "A Tradição das Máscaras na Ásia" a marcarem os anos seguintes. Ao mesmo tempo, haverá exposições temporárias mais pequenas, sobre "A Vida na China na Dinastia Han" ou "Os Instrumentos Musicais Asiáticos"."Que Portugal não tinha um museu do género, já sabia, mas que, sendo um país pioneiro na chegada ao Oriente, pouco tenha recolhido de artefactos dos povos que contactou, ou que as línguas e culturas asiáticas continuem sem uma licenciatura, isso é que me admira muito", diz Jacques Pimpaneau, para quem o Museu do Oriente pode vir a ser um importante pólo de actividade cultural ligada ao orientalismo. "Haverá visitas guiadas, ateliers de iniciação nas artes tradicionais, oficinas de teatro e de manejo de marionetas, aulas de caligrafia", explica. Mas deixa desde logo um aviso: "Serão contratados os melhores mestres, nos países de origem. Os cursos não serão para velhinhas sem ocupação, estarão antes vocacionados para os profissionais ocidentais curiosos de saber como se faz, do outro lado do mundo."O primitivo acervo da colecção foi parar às mãos de Jacques Pimpaneau em 1972, quando era professor em Hong Kong. O milionário local Kwok On tinha-se dedicado a coleccionar instrumentos musicais chineses, marionetas de Guangzhou (Cantão), livros, pinturas feitas por actores de ópera tradicional. Deu tudo ao professor Pimpaneau, que por sua vez alargou a colecção a outros países asiáticos, tornando-a verdadeiramente representativa. Pelo caminho, salvou tesouros únicos, desprezados e mandados para o lixo por descendentes de grandes mestres falecidos (como aconteceu no Japão), perseguidos e destruídos pelo furor ideológico (como na China, durante a Revolução Cultural dos anos 60)."Segui um caminho que mais ninguém seguiu", explica o sinólogo. "Esta colecção não é o Guimet, que faz o retrato do período colonial, que já acabou, que foi buscar objectos de arte das elites. Hoje seria impossível fazê-lo, os países não deixariam sair esse tipo de objectos."Pimpaneau e a mulher continuam à procura da arte popular, "inseparável das crenças religiosas, a arte anónima, como havia na Europa medieval, onde não se sabe quem foram os autores das estátuas das catedrais". Essa arte popular, folclórica no verdadeiro sentido do termo, já acabou no Ocidente, garantem. E está prestes a acabar na Ásia, pelo efeito da globalização de gostos, usos e costumes. Além disso, "as peças que hoje ainda conseguimos comprar são relativamente baratas e não nos põem problemas nas alfândegas. Dentro de 20 anos, os preços serão proibitivos", asseguram. Quando Jacques Chirac anunciou o projecto para a criação de mais um museu nacional, em Paris, dedicado à "arte popular ou primitiva", começaram a aparecer as lojas de antiguidades africanas em volta do local onde será inaugurado. E os preços dispararam, recorda o casal. Por outro lado, "um museu, tal como o entendemos, não deve ser uma boutique de antiguidades de alta qualidade", defende o professor Pimpaneau, que na juventude foi secretário do pintor Jean Dubuffet (1901-85) e que ainda hoje continua muito influenciado pelos conceitos de estética e de arte do mestre. "Ele encontrava a sua vitalidade nos estilos e nos materiais desdenhados pela cultura. Defendia, nos seus escritos, a 'arte bruta' das crianças, dos loucos, dos ignorantes."Dias depois deste almoço ribeirinho, o casal partia para mais uma digressão pela China rural, aproveitando a época de vários festivais populares para a compra de mais objectos "em estado puro". É dessa pureza matricial, tão embotada pela cultura de massas que chega a praticamente todos os cantos do globo, que a colecção Kwok On dá testemunho. E de que o futuro Museu do Oriente será um guardião do templo, bem junto ao Tejo, de onde há meio milénio saíram as caravelas em busca do misterioso Oriente. Foi dele, como dizia Pessoa, que nos veio tudo. Tudo.

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