A aventura KWY era uma vez em Paris

Nem corrente, nem programa, nem manifesto. KWY (as três letras que não existem no alfabeto português) é a aventura de uma amizade entre seis artistas portugueses - René Bertholo, Lourdes Castro, Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, José Escada, João Vieira - um búlgaro - Christo - e um alemão - Jan Voss. Jovens, estrangeiros e sem um tostão, na Paris de 1958 - muito mais não teriam em comum -, produziram12 números de uma revista de artes plásticas e literatura (hoje autêntica preciosidade bibliográfica), quatro exposições em quatro cidades europeias, e edições de livros-catálogos. A retrospectiva que a partir de hoje abre ao público, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa - e que ontem reuniu os oito artistas, primeiro num almoço de reencontro, depois na inauguração formal, à noite - é a primeira mostra abrangente da obra desse grupo. Mas trata-se realmente de um grupo? 40 e tal anos depois, o búlgaro Christo defende que não (ver entrevista na página ao lado). "É uma coisa que não se pode agarrar", sintetiza docemente Lourdes Castro, "cada um fez o que quis, estando na mesma aventura. Não tínhamos dinheiro, imprimimos os três primeiros números no nosso quarto. Foi como uma carta aos amigos. E o René [Bertholo] chamou-lhe KWY porque nós queríamos mesmo sair de Portugal, ser outra coisa.""Nós", no princípio, eram apenas Bertholo e Lourdes Castro, que se tinham conhecido na Escola de Belas Artes de Lisboa. Acabado o curso, em 1957, casam e partem para Munique, na Alemanha, com Costa Pinheiro e Gonçalo Duarte, abandonando um país rarefeito onde, como relembra no catálogo a comissária da exposição do CCB, Margarida Acciaiuoli, "os pintores eram obrigados a trabalhar em outros ofícios; os ateliers não podiam ser rentabilizados; o Museu de Arte Contemporânea não expunha obras contemporâneas; não havia galerias ou só existia uma - a Galeria Pórtico; para exporem tinham que se desmultiplicar na preparação de catálogos, envio de convites, arranjo das salas e outra tarefas similares" e o público não entendia essa necessidade de "uma renovação total do gosto", tal como a formulou René Bertholo.A Munique segue-se, em 1958, Paris, onde Lourdes Castro e Bertholo encontram João Vieira, que já lá estava a estudar e, meses depois, o também recém-chegado Christo. Costa Pinheiro e Gonçalo Duarte chegarão dois anos depois. José Escada - com quem Bertholo, Duarte e Vieira haviam partilhado um atelier em Lisboa, por cima do célebre Café Gelo da tertúlia surrealista - junta-se-lhes em 1960, altura em que o alemão Jan Voss (amigo dos tempos de Munique) também fixa residência em Paris.Em Maio de 1958, o primeiro número da KWY (8 págs., 60 exemplares impressos) é ainda só Lourdes Castro - que concebe a serigrafia da capa - e René Bertholo. A partir daí e até ao último nº, o 12º (em 1963), publicarão na revista - entre artistas plásticos, poetas e críticos, não contando com os oito "membros fixos" - nomes como Helder Macedo, Herberto Helder, Cargaleiro, Vieira da Silva, Nuno de Bragança, José-Augusto França, Jorge Martins, Manolo Millares, Mário Cesariny, Pedro Tamen, Arpad, José Gil ou Yves Klein.Em 1960 acontecem as duas primeiras exposições do grupo: Saarbrüken e Lisboa - na Sociedade Nacional de Belas Artes -, a que se seguem Paris (1961) e Bolonha (1962). Até 1967, o KWY prolongará a sua existência em algumas edições.A (longa) viagem que o CCB propõe percorre tudo isto, de forma exaustiva. Entramos por um átrio onde estão expostos os 12 números da revista KWY, com as capas - da autoria, alternada, dos membros do grupo, com algumas extraordinárias, como a de Lourdes Castro, em alumínio decalcado, ou a de Christo, em serapilheira - ampliadas para posters gigantes, pendurados sobre a cabeça dos visitantes. Além das serigrafias, dos guaches, das aguarelas, das colagens, dos recortes dos diversos artistas plásticos, descobrem-se raridades como (no nº3) o original de Herberto Helder intitulado Ouro - "minha mão entreabre o subtil arbusto / de fogo e estou imensamente vivo" - ou (no nº 5) o Romance de Cesariny - "qualquer coisa ardia ao contrário".Nos primeiros núcleos - que ladeiam esse átrio inicial - encontramos uma infinidade minuciosa de materiais que de alguma maneira estão relacionados com esses 12 números: as obras originais, cartas, bilhetes, pedidos (como um do "Times Literary Supplement" solicitando o envio de exemplares para crítica), fotografias, cartazes.Depois há oito salas, para revisitar a obra de cada artista, contemporânea do período KWY: lá estão os primeiros embrulhos de Christo, as primeiras sombras em plexiglas de Lourdes Castro, os recortes de José Escada, as figurinhas festivas de Jan Voss ou as letras de João Vieira. Foi daqui, da aventura KWY - "um encontro comum que funcionou como encontro de cada um consigo próprio" - que cada um partiu depois, no seu próprio caminho.

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