Ballet em pontas de bambu

Uma China imaginária voa sobre telhados, paredes e lagos, e dança em pontas do bambu. Romance a artes marciais num dos filmes mais delirantes do ano, "O Tigre e o Dragão".

Diz a lenda que o coração de cada realizador chinês fervilha com o desejo de regressar à infância, a uma China imaginária que nunca existiu, onde cavaleiros errantes, sujeitos a uma disciplina estóica, lutam pela honra, lealdade e justiça. Se fosse na América, teríamos de falar em "westerns"; como se trata do cinema chinês, há uma versão muito própria do pistoleiro solitário a chegar a uma cidade sem lei, e é preciso atirar com o nome de "wuxia pian"."Wuxia pian" - começou por ser uma forma de conto tradicional (milenar, já popular no século IX) em que os códigos das artes marciais e a fantasia se misturavam em espiral. A partir dos nos anos 20, tornou-se o género por excelência do cinema chinês, que suspendia todas as regras, de gravidade e de narrativa, para colocar no centro um delírio de "realismo mágico". A força interior e a renúncia pessoal dos heróis - as artes marciais como disciplina espiritual, o Wudan - são o trampolim que os lança ao ar, e por isso na rodagem desses filmes a única coisa que prende os actores ao chão são os fios. Foi assim a voar, sobre telhados, paredes, lagos e florestas de bambu que o "wuxia pian" chegou ao seu apogeu em filmes como "A Touch of Zen", de King Hu (1969). Depois dos anos 60, com a entrada em cena de Bruce Lee (e depois Jackie Chan), com as suas técnicas mais exteriorizadas e violentas de combate - o Shaolin -, foi o declínio do "wuxia pian" e das artes marciais como graça balética.Ao género se regressou com várias reformulações, ao longo dos anos - mais futuristas e sobrenaturais, no caso de Tsui Hark ("Zu: Warriors of the Magic Mountain", de 1983, ou "Chinese Ghost Story", de 1987); mais filosóficas e introvertidas, no caso de Wong Kar-wai, com "Ashes of Time" (94). Ficaram como obras de culto, mas nenhuma delas conseguiu a proeza do chinês estrangeirado chamado Ang Lee - nascido em Taiwan, mas desde os anos 70 a viver nos EUA - que teve saudades dos filmes da sua infância. Independentemente de se saber se "O Tigre e o Dragão"/ "Crouching Tiger, Hidden Dragon" vai dar origem a um "revival" desse género asiático, já é o filme estrangeiro mais visto nos Estados Unidos, que é o país que conta para este tipo de contabilidade.Para concretizar o seu sonho, Ang Lee adaptou um romance em cinco volumes de Wang Du Lu, escrito há mais de 80 anos, em que a acção se passa num idealizado início do século XIX. Juntou um "cast" que é uma espécie de utopia asiática: Chow Yun-Fat (Hong Kong), Michelle Yeoh (Malásia) - hoje, as duas estrelas asiáticas de maior renome internacional, ao lado de Jackie Chan -, Zhang Ziyi (China "mainland") e Chang Chen (Taiwan). Os dois primeiros são guerreiros retirados, à procura da paz na idade madura, incapazes de concretizarem, por abnegação e estoicismo, o amor que os ligou. No espectro oposto desta tristeza já interiorizada, já só serenidade, está a paixão e o ímpeto juvenil dos dois últimos, que são, verdadeiramente, o "tigre" e o "dragão". Os dois casais cruzam-se devido a uma espada roubada, por causa de lições não aprendidas, por causa de energias mal direccionadas, por causa do poder do conhecimento. Há testemunhos morais que se passam, e há uma vilã, a Raposa Jade (interpretada por uma vedeta do kung fu da era de 60, Cheng Pei Pei).Michelle, 37 anos, e Chow, 44, são velhos amigos e as coisas não foram fáceis para os dois durante uma rodagem, cheia de cenas de combate, que durou seis meses. Chow teve de aprender mandarim e artes marciais, o que nunca fizera antes, enquanto Yeoh, a única "bond girl" à altura do agente secreto 007 em "O Amanhã Nunca Morre", sofreu uma lesão grave numa perna no início da rodagem - mas ninguém diria que nos momentos mais ternos do filme, entre ela e Chow, Michelle tinha a perna coberta de gesso."Esperámos 15 anos para trabalharmos juntos", conta Michelle. "Na Ásia ninguém percebia por que razão nunca aparecíamos no mesmo filme. Quando Ang Lee filmou a primeira cena em que aparecemos lado a lado, estava excitadíssimo e chamou-nos para vermos o monitor. Por norma não costuma fazer isso, mas disse: 'Olhem para vocês os dois!'""É muito invulgar um argumento combinar tão bem o romance e as artes marciais", continua Chow Yun-Fat. "Claro que fiz uma data de filmes com John Woo ["A Better Tomorrow", "The Killer", "Hard Boiled"], com muitas armas de fogo, mas nunca peguei numa espada com tanta graciosidade e beleza em frente a uma câmara."Yeoh recorda: "Quando conheci Ang, ele perguntou-me se eu queria fazer 'Sensibilidade e Bom Senso', mas com artes marciais. A minha reacção foi: 'Está bem, quando?'". Não é apenas uma "boutade": "O Tigre e o Dragão", na verdade, continua a fazer eco do tema que percorre a obra de Ang Lee, que já estava em "Sensibilidade e Bom Senso" (96) e nos anteriores "Comer Beber Homem Mulher" (94) e "O Banquete de Casamento" (93): o conflito entre o dever social e a liberdade individual que se materializa nas relações mestre/pupilo, pai/filho. Por aí, "O Tigre e o Dragão" é um melodrama interior, uma serena "pintura" de emoções escondidas, tanto quanto depois se transfigura no exterior, quando os combates e a natureza são coreografados à medida justa das emoções que explodem. Aqui, é preciso falar em Yuen Wo Ping, a quem "O Tigre e o Dragão" deve parte fundamental da sua popularidade. Apesar de o seu nome significar "Paz", Wo Ping, 55 anos, construiu uma carreira em Hong Kong a orquestrar fantásticas sequências de combate e outras proezas suspensas por cabos que são dignas de um "ballet". Hollywood foi buscá-lo para os efeitos de "Matrix", e em "O Tigre e o Dragão" Wo Ping volta a combinar uma técnica "pura" e artesanal - suspender os actores por cabos no "plateau" - com as possibilidades digitais oferecidas por Hollywood ("apagar" depois os fios). É a ele que se deve uma das mais luxuriantes e prodigiosas sequências de acção do cinema moderno: o combate entre Chow Yun-Fat e Zhang Ziyi na ponta dos ramos de uma floresta de bambu.Chow Yun-Fat assustou-se: "Fiquei pendudo a uma altura de dois metros numa floresta de bambu para a cena de combate com Zhang Ziyi. Foi assustador, mas quando estava no ar parecia que andava numa montanha-russa e foi também muito divertido".Todos estavam, então, à mercê do rigoroso mestre Yuen Wo Ping. "Já tinha trabalhado com ele em dois filmes anteriores", conta Michelle Yeoh, "por isso conhecia o seu talento e como nos faz trabalhar como escravos, especialmente no combate corpo a corpo. Para a primeira sequência de luta de 'O Tigre e o Dragão' ele queria algo de diferente, foi muito mais dura e muito mais rápida do que o costume. Com os cabos, podemos subir e descer paredes, virar esquinas, saltar, continuar a lutar e prosseguir."Yeoh estudou dança na esperança de seguir a carreira de bailarina, mas desistiu devido a problemas na coluna. Foi parar por acaso aos filmes de acção quando, na qualidade de Miss Malásia, apareceu com Jackie Chan num anúncio de Hong Kong. Mas a grande oportunidade surgiu com "O Amanhã Nunca Morre", onde desempenhou o papel de uma especialista em karate possuidora de extraordinárias capacidades de combate e espionagem."Não fui uma 'bond girl' típica", admite, "mas queriam uma personagem feminina diferente, e foi isso que concordei fazer. O produtor disse-me que precisava de uma mulher que estivesse à altura de Bond."Em "O Tigre e o Dragão", numa presença mais emotiva, Yeoh insistiu em trabalhar sem duplo, apesar da sua lesão. "O Chow estava sempre a dizer: 'Não precisas de fazer isto, já deste provas mais do que suficientes. Mesmo que utilizes duplos ninguém vai duvidar que és tu'. Mas não compreendem que é a satisfação de ter sido eu a fazer tudo que me leva a continuar a fazer filmes de acção." Também Chow começou a representar por acaso, quando um amigo o inscreveu num concurso de talentos numa estação de televisão local. A partir dos 19 anos fez todo o género de trabalhos, desde filmes a telenovelas e até filmes semi-eróticos - onde, faz questão de salientar, nunca foi actor principal. John Woo dirgiu-o pela primeira vez em 1986 e a fama internacional chegou em 1991 quando "The Killer" foi exibido no Festival de Sundance. Em meados da década de 90 estreou-se em Hollywood a falar inglês em "The Replacement Killers". Já participou em mais de 80 filmes.Zhang Ziyi, a rebelde de "O Tigre e o Dragão", era ainda estudante por altura das filmagens e diz que aprendeu muito com os colegas mais experientes. "Chow Yun-Fat era o meu ídolo", confessa, "e lembro-me de passar um dia inteiro frente aos portões do estúdio de cinema de Pequim à espera de um autógrafo dele. Mas quando trabalhámos juntos esqueci isso. Tanto ele como a Michelle são pessoas muito simples e ensinaram-me imenso. Se um dia quiser tornar-me uma estrela vou seguir o exemplo deles."Não deixa de ser irónico que o sonho asiático de Ang Lee chamado "O Tigre e o Dragão", que no Ocidente chegou aos Óscares, seja um relativo fracasso... na Ásia - com excepção de Taiwan e Singapura. Na China, onde a rodagem teve intensa cobertura mediática, os resultados de bilheteira foram decepcionantes, tal como em Hong Kong. Os nomes de Chow Yun Fat e Michelle Yeoh não fizeram nada pelo filme - ao que se diz, foram até motivo de gozo, já que o actor de educação cantonesa e a actriz de educação inglesa estão pouco à vontade a falar mandarim. O filme foi considerado demasiado ocidentalizado pelos espectadores asiáticos, que não estão habituados a ver o "wuxia pian" com uma narrativa tão linear e com sequências de diálogos que não são apenas bengalas entre as cenas de acção. Quanto a estas, já há décadas que vêem actores a voar...Do lado de cá, do Ocidente, Ang Lee também não se tem livrado, apesar do sucesso, das críticas de ter feito um "chop suey" para clientela ocidental, limando as arestas do que podia ser "intragável". Quantos dos que deliram com "O Tigre e o Dragão" aguentariam até ao fim "A Touch of Zen", de King Hu, de onde vêm algumas das citações, pergunta-se? Faz sentido responder que Ang Lee foi fiel às saudades do seu coração. Se ele é híbrido, a meio caminho entre a Ásia e a América, isso só dá a "O Tigre e o Dragão" uma intensa nostalgia.

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