Uma audiência com o Presidente Bartlet

O Presidente Bartlet e os seus assessores não vão estar amanhã à noite na TVI para mais um episódio de "Os Homens do Presidente". É preciso esperar pela chegada da segunda temporada da série, que vai de vento em popa nos Estados Unidos. Mas talvez este seja então o momento ideal para sermos recebidos por aquele que é, a acreditar nas audiências, um dos mais populares presidentes norte-americanos dos tempos modernos. Uma audiência com Bartlet, aliás Martin Sheen, o actor que vive o segundo grande êxito da sua longa carreira, agora na tv, depois do distante "Apocalypse Now".

Não há nada como estar sentado na Sala Oval da Casa Branca, folheando e espreitando os documentos confidenciais do Presidente, para nos dar a sensação de que somos alguém importante enquanto esperamos. E espera-se mesmo. Seis horas para ser exacto, até ser conduzido ao local solene, numa espera justificada por hoje ser um dia muito especial no set do mais recente mega sucesso televisivo norte-americano, a série "The West Wing" ("Os Homens do Presidente", nove Emmys conquistados no ano passado).Alguns "camareiros" bem reais da Casa Branca, incluindo a ex-chefe do gabinete de imprensa de Bill Clinton, Dee Dee Myers, agraciam-nos com a sua presença e até nos dão a honra de aparecerem a fazer de si próprios na série televisiva, tal é a ligação simbiótica entre o entretenimento e a política. A envelhecer elegantemente - e sem que o rosto mostre sinais do tórrido interlúdio vivido a meia-idade, nem do ataque de coração sofrido meses antes de fazer os 37 anos -, Martin Sheen, o actor que interpreta o popular presidente Josiah Bartlet no melodrama "The West Wing", é o charme em pessoa.E até se mostra bastante prazenteiro em responder a qualquer pergunta sobre si próprio e os quatro filhos - Charlie Sheen, Emilio, Ramon e Renée Estevez, todos de Janet Templeton, a mulher com quem é casado há 38 anos -, muito embora mais tarde surja a admoestação, por parte de um "lacaio" bajulador, de que não se lhe está a prestar a devida deferência. Trata-se de um caso típico de confundir o actor com o personagem, algo que ocorre amiúde, segundo explica Martin Sheen. "A única maneira de ser bem sucedido a interpretar um presidente é agir como se não o fosse, mas deixar que os outros me tratem como se o fosse. O mesmo sucede com um actor a fazer o papel de rei. Se ele for tratado como um rei, então ele torna-se um rei. Se não, também não faz diferença nenhuma que ele se comporte como um rei". É raro um drama político conseguir alcançar um grande sucesso na televisão. "Nós não sabíamos se este ia ter sucesso, mas agora que parece que vamos estar aqui por um bom bocado tenho que começar a pôr-me em forma. Adoro comer. Tenho 81,6 quilos e sou baixo, o que significa que nas câmaras fico com ar de estar com peso a mais. Faço ioga quatro vezes por semana".Martin Sheen é politicamente activo há muito tempo, tendo trabalhado como voluntário na campanha de Bobby Kennedy para o Senado em 1964, para além de ter no cadastro diversas detenções por participar em manifestações anti-nucleares, mas também possui uma ideia muito própria do poder. "Não tenho qualquer interesse na política per se. Não consigo sequer imaginar porque razão alguém quer ser presidente. A vida de uma pessoa acaba assim que dá a conhecer que quer ocupar a Sala Oval. Nós elegemos uma instituição, a família do homem em questão, toda a sua equipa. Um presidente tem que ser alguém com um ego enorme que tem a fantasia de vir a ter um impacto na história". Martin Sheen sente-se desconcertado com o processo eleitoral presidencial do ano passado. Aliás tal como Aaron Sorkin, o criador da série "The West Wing", o qual afirma que um argumento como aquele seria rejeitado pelo Fantasy Channel, e até aproveita para dizer que George W. Bush "é como um mau comediante a tentar conquistar a audiência".Sheen era fã do Presidente John F. Kennedy, o qual até interpretou numa mini-série televisiva em 1983 (intitulada "Kennedy"). "Estas histórias, que se desemaranham após a sua morte, tornam-no mais substancial para mim porque ele era humano. Nós idealizamos os nossos líderes, erguemo-los bem alto para que tenhamos o poder de os deitar abaixo... faço-me entender? A psique norte-americana é muito estranha. Assim que um homem se torna presidente deixa imediatamente de haver pecado original, como se ele deixasse de ter sexo. Há por aí muita hipocrisia e até me sinto orgulhoso por o presidente Clinton ter lutado contra isso e não ter deixado que aqueles paspalhos levassem a melhor. Tenho por ele um profundo afecto e respeito, é um homem heróico. Tenho pena que esta seja uma opinião minoritária na América, mas conforme o tempo for passando sei que vamos ter uma imagem diferente dele quando ficar claro qual foi a sua contribuição".Martin Sheen nasceu como o nome de baptismo Ramon Estevez (foi buscar o apelido Sheen a um bispo que admirava), em Dayton, no Ohio, o sétimo de dez irmãos, com um pai espanhol e uma mãe irlandesa que morreu dois dias antes de ele celebrar o seu 11º aniversário. Durante o parto foi puxado por forceps que lhe mutilaram um ombro, deixando-o com o braço esquerdo sete centímetros mais curto do que o direito. "Fiquei algo intimidado com esse ferimento porque gostava muito de desporto mas sabia que nunca poderia ser um atleta devido a essa deformação. Mas seria bom a fazer de Ricardo III. É-me fácil perceber o tipo", Martin ri-se. "Recordo-me de há alguns anos me ter lamentado a Janet por causa da minha deformidade, ao não ser capaz de fazer algo que queria fazer, e ela quase me bateu. Disse-me: 'Devias era pôr-te de joelhos e agradecer aos Céus por isso ter acendido o fogo em ti e te ter posto no caminho que tinhas que fazer'. E ela tem toda a razão. Foi um factor extremamente motivante. Eu tive que me exceder para o compensar"."Eu já queria representar antes mesmo de saber como isso se chamava. E foi só quando comecei a ir ao cinema, tinha para aí uns sete anos, que percebi: 'Sou um deles!' E então senti-me bem. Se se seguir apenas o dinheiro, ou seja lá o que for que qualquer outra pessoa ache que se deva seguir, ser-se-á inevitavelmente infeliz". Com 18 anos, Martin Sheen chumbou propositadamente o exame de admissão à Universidade de Dayton, pediu dinheiro emprestado ao seu padre e apanhou um autocarro para Nova Iorque, onde trabalhou como substituto num teatro. Muito esporadicamente conseguia representar pequenos papéis."Há dias em que me sinto profundamente feliz por ser actor, porque isso foi a minha salvação, mas em outros dias, meu Deus, desejo ter sido qualquer outra coisa. Na América acha-se que o talento pressupõe sucesso. E se não se for bem sucedido em algum momento, ou se se fizer um mau filme porque se está a precisar desse dinheiro, paga-se por isso. Fiz 80 por cento do meu trabalho por dinheiro e isso foi embaraçoso. Conto pelos dedos de uma mão os filmes de que me orgulho ter feito. "Badlands" é o que está à cabeça dessa lista, a que se segue "Apocalypse Now", "Gandhi", "Wall Street" e "American President"... mais uma mão cheia deles, aliás como na televisão, orgulho-me de 20 trabalhos de entre centenas deles. São muitas as vezes em que uma pessoa se pergunta por que razão está a fazer algo, e isso transparece no trabalho que se faz. É algo que não se consegue esconder".Martin Sheen nunca andou nos grupos dos famosos de Hollywood. "Com toda a sinceridade, nunca tive essa oportunidade, e não tinha sequer o estatuto de celebridade. Sou um actor de filmes, mas não sou uma estrela e, agora, estou um bocadinho velho demais. Não me tornei actor para ser um falhado e evidentemente que queria ser uma estrela de cinema. Mas isso não aconteceu da forma que eu esperava, ou como vi acontecer a outros. Pensei que isso havia de vir até mim e por isso não fui atrás. Não é da minha maneira de ser. Nunca tive um assessor de imprensa, nem sequer um agente. Tudo o que tenho é uma gestora que vive nas montanhas do Utah com um telefone e um fax. Antes costumava ter inveja mas já não tenho. Agradeço a Deus ter tido a minha carreira e a minha família. Representar é algo maravilhoso, mas o lado de negócio que isso também tem não é nada bom, porque temos que ceder naquilo em que acreditamos para alcançar o sucesso".O actor alcançou a fama mundial ao interpretar o Capitão Ben Willard, que eliminava o psicótico Coronel Kurtz (Marlon Brandon) em "Apocalypse Now". "Não ganhei dinheiro com o filme, mas depois de este ser lançado nas salas de cinema as coisas mudaram". Primeiro, porém, sofreu um ataque cardíaco, aos 36 anos, durante as filmagens, nas Filipinas, em Março de 1977. "Estive muito perto da morte. Foi uma experiência iluminadora que me ensinou que não estava assim tão receoso da morte quanto estava da vida. A morte é inevitável e quando estive ali mesmo à beira de morrer não senti medo. Mas ainda tenho a sensação de que não estou a viver plenamente este momento ou até a compreender como a vida é um dom imenso que deve ser celebrado".Martin já celebrou um tanto quanto demais: jogava - "Adoro apostar nos cavalos e costumo ir a Las Vegas, embora nunca tenha ido além daquilo que podia pagar"-, separou-se de Janet durante algum tempo - "Acho que ela é uma santa, mas ela não concorda. Dizia-me 'Não te livras de mim assim tão facilmente'. Finalmente percebi que ela é a minha professora" - e bebia copiosamente. "Sou um alcoólico e só deixei de beber em 1989. A insegurança pode ser parte da equação, mas nunca me envolvi com drogas, graças a Deus. Isso ter-me-ia morto. O álcool já é suficientemente mau. Misture-se o álcool com o ego e a insegurança e o resultado é o vício. Eu era extremamente auto-destrutivo. Há muito disso entre os actores e não sei porquê. É-me difícil articular ideias exactas acerca do meu próprio comportamento".Uma das razões é porque ele não se sentia digno de ganhar tanto mais dinheiro do que o pai. "O meu pai batalhou durante muitos anos para criar dez filhos, e não me foi fácil lidar com o facto de ganhar o dinheiro que eu ganhava trabalhando tão pouco. Não lhe chamaria uma crise da meia idade porque isso seria fácil demais. A crise de meia idade é provocada pela percepção inadiável de que se vai morrer. E isso pode acontecer quando se tem seis anos e se assiste à morte do cão que se tem... aí uma pessoa percebe também que não vai estar aqui para sempre".Martin foi educado segundo a religião católica, mas perdeu a fé ainda jovem. "Quando se tem 21 anos acha-se que se sabe tudo e eu não fui excepção. Hoje tenho 60 anos e sei que não sei coisa alguma, apesar de acreditar em muita coisa". O regresso ao catolicismo nos anos 80 foi catártico. "Tornou-se algo supremo na minha vida, algo que toca todos os aspectos da minha vida. Isto não significa que tudo se tenha tornado mais fácil ou que eu tenha encontrado quaisquer respostas, mas é algo que me dá uma âncora, algo sem o qual eu ficaria à deriva. As nossas vidas devem traduzir-se num esforço de unir a vontade do espírito ao trabalho do corpo. É tão difícil pôr ambos a trabalhar em conjunto, e a arte é uma das poucas formas em que se pode assistir a essa manifestação. Ouve-se Mozart ou Verdi e diz-se 'Eles estavam a ouvir Deus' ou então lê-se Shakespeare e perguntamo-nos 'De onde é que isto veio?'. Estes homens conseguiram unir a vontade do espírito ao trabalho do corpo".Dois dos filhos de Martin Sheen, Charlie e Emilio, tiveram problemas com o álcool e a droga. "Pode ser que seja hereditário. Não sei. Há imensa pesquisa a ser feita, mas creio que não deixa de ser uma escolha. A disciplina tem que entrar nisto em alguma lado". Em 1998, Martin informou a polícia de que Charlie (que se gaba de ter dormido com cinco mil mulheres, muitas das quais prostitutas de luxo, e que esteve em reabilitação durante dez anos) tinha violado as regras da liberdade condicional. "Tive de o fazer. Era isso ou prepará-lo para o enterro. Faz três anos em Junho que ele está 'limpo'. É o maior milagre nas nossas vidas, pois ele esteve muito perto do fim. Creio que ele e Emilio tiveram demasiado sucesso demasiado novos. Não sei se eu teria sobrevivido a isso, nem sei sequer como é que alguém é capaz de o fazer. Como é que se volta a ser um ser humano depois de se ter sido adorado como um titã e amado pelo mundo inteiro? Os meus filhos já voltaram cá para baixo". Charlie, agora com 35 anos, substituiu Michael J. Fox na série de humor "Spin City", que é, ironicamente, concorrente de "The West Wing" nos Estados Unidos.Martin não sabia que os filhos queriam ser actores. "Estava tão envolvido nas minhas próprias coisas... Emilio sempre se manifestou interessado nas questões ambientais e gostava muito de desporto. Um dia pensei em levá-lo comigo para umas filmagens e acabou por lhe ser dado um papel. Com Charlie passou-se o mesmo. Pouco a pouco entendi que eles tinham estado a manifestar o seu interesse, mas que eu é que não estava atento. Pensei que era muito pior pai do que realmente era porque me estava a condenar constantemente, mas os rapazes são muito mais realistas do que eu. Não estamos sempre de acordo mas respeitamo-nos e adoramo-nos uns aos outros".Nos seus "tempos loucos", Charlie teve uma filha ilegítima, Cassandra, hoje com 15 anos, e Emilio teve dois filhos, actualmente com 14 e 13 anos. "As crianças foram um presente de Deus e recebemo-los com o coração e braços abertos" afirma Martin, que comprou casas para ambas as mães. "De início, os meus filhos não queriam que o fizesse porque eles não têm bons relacionamentos com elas, e não porque não amassem os seus filhos. A possibilidade de elas abortarem chegou a ser posta, mas nem eu nem a minha mulher somos a favor. Uma pessoa não pode simplesmente apagar algo que esteve a viver dentro de si, e o aborto também não pode ser usado como método de controlo dos nascimentos, apesar de eu também não querer aqui fazer julgamentos sobre outras pessoas".Junto de Martin aparece então Ramon, actualmente a trabalhar como assistente pessoal do pai, e o laço afectivo entre os dois é visivelmente forte. Ambos trabalham como voluntários em programas locais de "sopas-dos-pobres". E, em 1989, quando foi nomeado "mayor" honorário de Malibu (onde habita desde 1969, quando viver ali ainda era barato e não estava na moda), Martin ameaçou tornar aquele subúrbio cada vez mais rico num santuário para os sem-abrigo e os estranhos, assim como numa zona livre de energia nuclear. As suas propostas não receberam o acordo da população. "Os meus companheiros 'malibu-tinos' são uma cambada de parvalhões e cretinos", sentencia. "Este é um rico subúrbio branco, onde as pessoas não sabem absolutamente nada do mundo real. Tenho muito poucos amigos aqui".© PÚBLICO/Planet Syndication

Sugerir correcção