Raymon Depardon: sem truque e sem ilusões

Nas Noites Longas da SIC, espaço de "marca cultural", vai ser exibida ópera, entrevistas de Bernard Pivot, e um ciclo dedicado a um grande fotógrafo e cineasta, Raymond Depardon.

As Noites Longas da SIC, programação "late night", a partir de dia 6 - todas as semanas, à 3ª, 4ª e 5ª -, quer oferecer uma programação com "marca cultural e artística", com filmes, teatro, ópera ou documentários. Arranca com ópera: "Falstaff", de Verdi (6, à 1h30), "Mozart na Turquia", documentário sobre a produção de "O Rapto do Serralho" (7, à 1h30) e um documentário de William Klein que mistura a oratória "O Messias", de Haendel, com fragmentos de reportagem da vida e de quadros de Bosch (8, às 2h00). Para o final de Fevereiro, virão três entrevistas de Berard Pivot, para a série Apostrophes - Margueritte Duras, Françoise Dolto e Marguerite Yourcenar - e entre um e outro ciclo vai haver espaço para mostrar todas as curtas metragens do fotógrafo e cineasta Raymond Depardon (de 13 a 15 de Fevereiro, sempre à 1h30), deixando para Março a exibição de três longas metragens: "Les Anées Déclic", "Urgences" e "Délits Flagrants".A obra de Depardon é tão difícil de resumir como a sua vida. O seu encontro com a fotografia dá-se no início da adolescência, época em que encontra numa actividade de alguma forma secreta e carregada de simbologia a expansão para uma personalidade introvertida e pouco sociável. E é precisamente pelo facto de a fotografia ser uma cultura relativamente enraizada socialmente nos anos 50, que o seu imaginário profissional pôde chegar ao filho de um casal de camponeses da Borgonha, cujo destino seria naturalmente outro.A partir daí, a vida de Depardon é marcada por um esforço constante para não se desviar da fotografia, mobilizando esforços para o dar a entender ao pai. Pede-lhe uma Rolleiflex e manda umas cartas para Paris. Recebe uma resposta, de Louis Foucherand, foto-repórter encartado, que o contrata por 350 francos e o aloja por trás do laboratório. Foi o começo, em 1 de Outubro de 1958, um começo nada mau para quem só tinha 16 anos. O seu percurso é novamente marcado, no final dos anos 60, pelo encontro com Gilles Caron. Quando em 1966 Hubert Henrotte o convida para formar uma agência (e deixar de ser um mero assalariado da agência Dalmas para onde entrara uns anos antes), Depardon pensa imediatamente em Caron, e juntos lançaram a agência Gamma. Gilles Caron desaparecerá em 1970 no Cambodja, após uma partida em grupo para a Líbia, interrompendo uma excelente obra como fotojornalista. Em 1978, Raymond Depardon deixa a Gamma para passar a integrar o grupo de fotógrafos da Magnum. Fotografia e cinema. As imagens de Depardon têm um cunho humanista que é comum a muitos fotógrafos da sua geração. Mas há qualquer coisa de específico que podemos detectar, qualquer coisa de intimista que transborda para fora de uma vertente sociológica, e que está ligada a uma necessidade de entendimento de realidades diferentes da sua. Esse lado reflecte-se no facto de a sua obra se concretizar, paralelamente ao trabalho de foto-repórter - que muitas vezes realizou por razões de sobrevivência -, em projectos pessoais, como o livro da "Correspondência novaiorquina" (Libération/Éditions de l'Étoile, 1981), que antes de ser editado em livro saiu diariamente no Libération. Mas reflecte-se também na sua atracção em fotografar ou filmar instituições que encerram marginais (ou tratam deles), como os asilos, os hospitais psiquiátricos ou a polícia, abordando locais onde a natureza humana se revela desorganizada, incomunicável ou sado-masoquista.Se a actividade trepidante de fotojornalista serve no início o impulso de Depardon para experimentar o mundo (e as pessoas), ela torna-se a certa altura objecto de interrogação em si mesmo, como é visível no documentário "Reporters" (1980). Pouco a pouco - oficialmente, desde "Jean Pallach" (1969) - começa a juntar, à máquina fotográfica, uma câmara de filmar. Se no começo usa esta última para trabalho jornalístico que vende à televisão, o que também o desilude, no final dos anos 70 a linguagem cinematográfica começa a invadir a sua postura perante o mundo. Não é difícil perceber porquê: a sua actividade como fotógrafo esteve sempre ligada a uma certa intenção narrativa, juntando legendas ou mesmo texto escritos por si às séries de imagens que produzia. E, sem querer jogar na banalidade, pode dizer-se que em muitas das fotografias mais pertubantes (como a dos asilos em Nápoles e Turim), encontramos dois elementos centrais da linguagem fílmica: o movimento e a pulsão narrativa.Talvez que a relação (ou tensão) que Depardon vive entre a fotografia e o cinema, seja afinal a convergência necessária entre duas linguagens que parecem completar-se, embora na verdade se oponham. Depardon consegue na fotografia a assimilação da experiência que a mobilidade do filme lhe deixa escapar; mas consegue no cinema a abordagem exaustiva, sem qualquer pudor ou truque (sem ilusões também), do seu próprio mundo interno, que a fragmentação fotográfica frequentemente impede. Em "Délits Flagrants" (1994), ou em "Urgences" (1987), como já em "Números zéro" (1977) - que lhe valeu um pedido de boicote pelo director do jornal cuja preparação documentara -, a câmara avança lentamente, agressiva e insinuante, mesmo que fixa, e o que fica no final é um verdadeiro sentimento de catarse, de elaboração verbal do não dito e do não expresso no quotidiano das relações humanas. Se a narrativa é documental ou simplesmente ficcional, isso é completamente irrelevante.

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