O meio século de Castelo do Bode

A barragem de Castelo do Bode faz hoje 50 anos. Construída com o objectivo de produzir energia eléctrica, a albufeira é actualmente o principal recurso abastecedor de água potável a Lisboa e muitos outros municípios. E se, na sua envolvente, existem localidades com carências no abastecimento domiciliário, o gigantesco espelho de água confronta-se com a pressão imobiliária e as embarcações a motor.

A barragem de Castelo do Bode, entre os concelhos de Tomar e Abrantes, foi inaugurada às cinco horas da tarde do dia 21 de Janeiro de 1951. Um investimento de 600 mil contos, que demorou cinco anos a construir e dez meses a encher. O interesse foi sobretudo focado na barragem, com três gigantescas turbinas que produziam energia eléctrica. Mas hoje é a água da albufeira que domina as atenções, quando, na sua envolvente, existem ainda aldeias que desconhecem o que é o abastecimento domiciliário de água.Apesar da água da albufeira de Castelo do Bode matar a sede a um terço da população portuguesa, há ainda problemas no abastecimento a diversas aldeias junto às suas margens, nomeadamente a localidades das freguesias da Serra e de São Pedro. Umas têm abastecimento deficiente, outras, pura e simplesmente, não o têm de todo.Mas o drama social das pequenas aldeias que há 50 anos ficaram afogadas nas águas turbulentas do rio Zêzere não se apagou da memória da maioria dos seus habitantes que ainda sobrevivem. "Eu tinha 16 anos nessa altura e lembro-me perfeitamente de durante alguns dias vir para baixo desta oliveira ver a albufeira a encher lentamente até desaparecerem os últimos telhados. Durante muito tempo sonhei com estas imagens e ainda hoje, de vez em quando, me surgem como um pesadelo", conta João Ernesto Monteiro, residente em Lisboa, mas que no último fim-de-semana voltou ao miradouro construído pela Câmara de Abrantes, junto ao local das suas contemplações de há cinco décadas, em Aldeia da Mata."As terras lá em baixo, do vale, eram das mais férteis da região e era das centenas de hortas ali existentes que os habitantes da zona tiravam o seu sustento. Como o Estado Novo considerava a obra um bem para a Nação, deram meia dúzia de tostões aos proprietários das casas e dos terrenos", recorda João Monteiro, sem tirar os olhos da planura da albufeira, avolumada pelas chuvas dos últimos três meses.A barragem, que prende mil milhões de metros cúbicos de água, criando um espelho de água com 59 quilómetros de extensão, é também o local de romaria de centenas de "peregrinos", com as indispensáveis tendas de "comes e bebes" e quinquilharias. Aparentemente, a acalmia na albufeira e o mau tempo daquele fim de tarde tornavam o cenário absurdo. As razões da romaria encontravam-se na descarga da água da barragem provocando jactos enormes de água. "Um verdadeiro fogo-de-artifício em água", como dizia, com espírito, um dos turistas junto ao parapeito da barragem.De resto, todos os números envolvendo a barragem e a albufeira são enormes, desde os 115 metros de altura máxima do paredão aos quatro mil quilómetros quadrados da bacia hidrográfica e à potência de 140 milhões de "watt" de cada um dos três grupos de geradores eléctricos.As mudanças verificadas em torno da barragem e da albufeira de Castelo do Bode nos últimos 50 anos espelham também muitas das mudanças económicas, sociais, culturais e ambientais sofridas na zona envolvente e no país. Mas o problema ambiental é o mais complicado. A valorização ambiental e turística provocada pela albufeira motivaram, sobretudo entre 1975 e 1990, um enorme surto de construção de moradias junto às margens, em particular no concelho de Tomar.O caos provocado por esta pressão urbanística e o facto de o fornecimento de água a Lisboa e dezenas de outros municípios ter começado a fazer-se a partir da albufeira obrigou à execução do Plano de Ordenamento da Albufeira de Castelo do Bode (POACB). O plano procurou disciplinar o uso e as actividades na albufeira e à sua volta.Em causa estavam as descargas de esgotos urbanos e industriais para a albufeira, a qualidade ambiental da área envolvente e actividades, como a motonáutica, sobre o espelho de água, ou as pecuárias em áreas próximas. Mas o POACB falhou os planos de protecção de Castelo do Bode, como reconhecem quer a secretaria de Estado do Ambiente quer as autarquias limítrofes. A questão principal liga-se com os mega-empreendimentos turísticos que têm sido lançados nos últimos anos, que a revisão do POACB, em curso, pretende limitar. Por outro lado, quem quer construir uma pequena moradia na malha urbana de aldeias ribeirinhas depara-se com sucessivos obstáculos à edificação, que muitos autarcas consideram exagerados e limitativos do desenvolvimento local.Se em 1951 o objectivo prioritário de Castelo do Bode era a produção de energia eléctrica, hoje a albufeira é vista muito mais como um recurso para o abastecimento público de água. Nos últimos anos, porém, várias actividades têm crescido junto ao enorme lago artificial - como a rega, a pesca, os banhos, a navegação a remos e à vela e, sobretudo, de embarcações com motor. "As motos de água põem em perigo os banhistas e, com os derrames, comprometem a qualidade da água que é preciso proteger", queixa-se um autarca da freguesia ribeirinha da Serra. Para este responsável, outro problema é o da diminuição dos acessos públicos à albufeira. "Muitos dos antigos acessos à água foram cortados pelos novos proprietários", comenta.Na freguesia de São Pedro, no concelho de Tomar, idênticos problemas têm sido apresentados pela população, exigindo-se que a albufeira não se transforme numa "coutada ou reserva só para benefício de alguns". Há também quem defenda, como sucede em Espanha e na Califórnia, que se comece a pensar na demolição de barragens com mais de 50 anos por motivos de segurança e ambientais. Miguel Sacristan, da Universidade Politécnica de Madrid, defende que, após cinco décadas, se deve decidir se as barragens devem ou não ser desactivadas ou mesmo demolidas.

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